19/05/2024 - Edição 540

Comportamento

Para 52%, Brasil pode virar um país comunista – apesar de não saberem o que é isso

Hoje, o mundo paralelo do bolsonarismo demoniza a esquerda, amanhã poderá ser a democracia

Publicado em 03/07/2023 10:27 - Leonardo Sakamoto e Josias de Souza (UOL), Lucas neiva (Congresso em Foco) – Edição Semana On

Divulgação a1

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Pesquisa Datafolha, divulgada no último sábado (1), indica que 52% concordam totalmente (33%) ou em parte (19%) com a afirmação de que Brasil corre o risco de se tornar um país comunista. Entre os eleitores que votaram em Bolsonaro no ano passado, o percentual sobe para notáveis 73%. Em março, pesquisa Ipec, com metodologia diferente, apontou 44% concordando totalmente (31%) ou em parte (13%) que o Brasil pode se tornar comunista.

Quem é minimamente bem informado sabe que o país estava mais próximo de voltar a uma ditadura de direita do que avançar para o comunismo. Esse resultado é, portanto, uma falsa percepção decorrente da influência das mentiras marteladas pelo bolsonarismo. Mais do que isso: mostra que muita gente não tem ideia do que seja comunismo.

É a força do Bolsoverso, a realidade paralela construída por Jair e aliados.

É fascinante que muitas dessas pessoas não façam ideia do que seja o comunismo, repetindo chavões ensinados por lideranças da extrema direita, que usam o termo para identificar e controlar seu rebanho.

A palavra “comunismo” retirada de seu sentido original, de propriedade comum dos meios de produção e da ideologia por ela sustentada, se tornou no Brasil um simples comando para o linchamento digital, independentemente de quem esteja do outro lado. O objetivo é tirar a credibilidade e destruir, muitas vezes para servir de exemplo. E, consequentemente, esse processo tornou a palavra depositária do “mal”. E um grande mal é sempre temido e vira uma ameaça.

Entres esses 52%, há quem defenda que o Brasil implemente o comunismo e os oportunistas que sabem que isso não está no horizonte, mas disseminam isso mesmo assim para causar medo entre seus seguidores. Esses dois grupos são numericamente pequenos. A esmagadora maioria é formada de pessoas que “aprenderam” que comunismo é algo ruim mesmo sem saber o que ele é.

Muitos que “xingam” pessoas ou instituições de comunistas não compreendem o que isso, de fato, a palavra significa. Caso as pessoas soubessem História e estivessem atentas ao que se passa à sua volta, buscando saber as manifestações do comunismo no Brasil e no redor do mundo, poderiam, inclusive, criticá-lo de forma mais embasada. E, acredite, há críticas a serem feitas.

Ouviram de seus “mentores” que comunismo é um tipo de “governo”, formado por “vagabundos que não gostavam de trabalhar”, que ajuda a “perverter sexualmente” as “pessoas de bem” e a “destruir as famílias”, controlado por “bilionários pedófilos” e “atores de Hollywood” que tentam “vacinar os cidadãos com chips 5G” a fim de controlar seus pensamentos. O excesso de aspas não é proposital, apenas triste.

Graças à sabedoria que circula nas redes sociais, descobrimos, que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook, o Twitter, o cantor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama, a deputada de extrema direita Marine Le Pen, banqueiros multibilionários e a multinacional Pfizer são comunistas. Além de Leonardo DiCaprio, claro.

Bolsonaristas chegaram a chamar a Embaixada da Alemanha de comunista por ela ter postado um vídeo explicando que o nazismo é um movimento de extrema direita após Jair defender essa aberração ao visitar o Memorial do Holocausto (sim, a gente passou muita vergonha internacional nos últimos quatro anos).

Pior: nossos conterrâneos disseram aos alemães que eles não entendiam muito bem o que era o nazismo. Como na vez que tentarem explicar a Roger Waters, fundador do Pink Floyd, a intenção por trás de Another Brick in the Wall, sua própria música.

O macarthismo tupiniquim inaugurado com o processo de impeachment de Dilma Rousseff fez com que pessoas fossem perseguidas por suas ideologias e até caçadas nas ruas só porque estavam vestidas de vermelho. Bolsonaro foi além e, seguindo a cartilha da extrema direita global, fomentou a ficção de que vivemos sob o risco da implementação do comunismo.

Visto como delírio por quem é bem informado, inclusive pelos poucos que defendem um Brasil comunista, a “ameaça fantasma” é uma excelente forma de gerar medo e manter o público engajado.

Houve um esvaziamento do sentido original da palavra. Não raro, muitos dos que chamam alguém de comunista acham que estão usando um palavrão genérico. Chegam a ser patéticas as cenas de documentários que mostram o crescimento da extrema direita pedindo para bolsonaristas ou trumpistas explicarem o que é comunismo.

Despido de seu significado, o termo também se tornou um elemento de identificação de grupo. Ou seja, uma postagem chamando a Pfizer ou Tite de comunistas imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão. De que aquilo é ruim, de que não deve ser consumido, de que deve ser combatido.

Seja 52% ou 44%, isso é muita coisa. O suficiente para vacinar com realidade paralela um naco da população, mantendo a sociedade ultrapolarizada e garantindo que fãs e seguidores do ex-presidente não percam a fé no capitão. Bem, pelo menos esse tipo de vacina ele nunca deixou faltar no país.

Hoje, a palavra é “comunismo”. Amanhã, quem sabe, será “democracia”.

Bicho papão

Bolsonaro gastou baldes de saliva nos últimos anos para infantilizar a política. Como nas antigas cantigas de ninar entoadas para fazer criancinhas dormir incutindo-lhes o terror, o capitão injetou no imaginário nacional o medo de que o comunismo surgiria do nada para pegar os eleitores que têm medo de careta.

Nos últimos dias, o inelegível ganhou um inesperado aliado. Lula decidiu assumir, gostosamente, o papel de boi da cara preta. Na quinta-feira passada, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral construía a maioria de 5 a 2 que banindo o capitão das urnas até o ano de 2030, o presidente petista discursava para a plateia esquerdista do Foro de São Paulo, reunida em Brasília. Lula elogiou os ditadores Fidel Castro e Hugo Chávez. E disse que “se orgulha” do rótulo de “comunista”. Na véspera, Lula já havia afagado o ditador venezuelano Nicolás Maduro numa entrevista na qual declarou que a democracia é algo “relativo”.

Condenado, Bolsonaro fez pose de “injustiçado” e disse que o banimento o transformará num “cabo eleitoral de luxo”. Neste sábado, nas pegadas do julgamento do TSE e da divulgação da pesquisa do Datafolha, Lula foi instado a comentar o veredicto do TSE. Afirmou que Bolsonaro “é um problema da Justiça.” Engano. Eleito no ano passado com a magra vantagem de 1,8% dos votos válidos, Lula demora a perceber que o futuro político do rival está nas suas mãos. A paulada da Justiça Eleitoral tonteou Bolsonaro. Mas não decretou sua morte política. Lula parece empenhado em conceder-lhe uma sobrevida.

Valdemar Costa Neto, o dono do PL, maneja a vitimização de Bolsonaro com maestria. Cavalgando uma megabancada de 99 deputados federais vitaminada pelo bolsonarismo, já havia lançado no ano passado o projeto “Bolsonaro 2026”. Em evento público, apresentou o projeto como uma cruzada contra o “comunismo” e o “socialismo”. Nos bastidores, Valdemar dizia coisa diferente. Tramava, em verdade, converter Bolsonaro em garoto-propaganda das campanhas do PL para a eleição municipal de 2024. Com a língua solta, Lula morde a isca, potencializando os planos do ex-mensaleiro Valdemar.

Se Lula tiver saúde e desempenho na economia, será candidato a um quarto mandato presidencial em 2026. Nesse contexto, o pior equívoco que pode cometer é o de imaginar que o Tribunal Superior Eleitoral pulverizou a influência política de Bolsonaro. Se a pesquisa do Datafolha serviu para alguma coisa foi para demonstrar que o antipetismo não é uma orquídea que prescinde de adubo. O Brasil continua dividido. Metade do eleitorado acredita que a esquerda come criancinhas. Parte da outra metade ainda pode ser seduzida pela tese segundo a qual a ultradireita, a despeito da imagem já bem rachadinha e do apreço por joias sauditas, ainda pode ser um mal menor.

O retorno do temor ao redor do comunismo é um fenômeno recente, levantado em grande parte por Jair Bolsonaro, que já adotava esse discurso desde o período em que era deputado. Hoje, essa narrativa preocupa especialistas como o historiador Daniel Pradera e o cientista político André Pereira César. Os dois especialistas alertam que, ao longo da história do Brasil, essa narrativa sempre foi adotada para fins antidemocráticos. Em 2022, esse discurso criou novos riscos, vindos de uma nova forma.

Origem do “terror comunista”

O historiador Daniel Pradera conta que o discurso anticomunista demorou para chegar no Brasil. “Até a década de 1920, a esquerda brasileira era predominantemente anarquista. O anticomunismo até então era uma discussão para um assunto distante, sobre algo que estava ainda acontecendo na Rússia e que não tinha muita relação com a política brasileira”. O Brasil teve seu primeiro partido comunista registrado apenas em 1922, com o surgimento do PCB: antecessor dos atuais PCdoB e Cidadania.

A situação começou a mudar apenas em 1935, durante os primeiros anos da ditadura de Getúlio Vargas. Setores das Forças Armadas tentaram, em conjunto com o PCB, se levantar contra o ditador e tomar o poder no episódio que ficou conhecido como Intentona Comunista. “A intentona foi fundamental porque permitiu com que o regime tivesse um inimigo”, aponta o historiador.

A tentativa de golpe de Estado por parte de comunistas, somada a uma maior consolidação do PCB, deixou tanto Getúlio Vargas quanto seus aliados próximos em alerta, abraçando a narrativa anticomunista para fortalecer seu regime. “É nesse período que surgem inclusive mitos sobre a atividade dos comunistas, como a história de que os revoltosos da intentona mataram soldados que estavam dormindo. Tivemos muita propaganda voltada para a ideia de terror comunista, com os mesmos jargões que conhecemos hoje como o clássico ‘comunista come criancinha’”.

Primeiro golpe

Em 1937, o governo de Getúlio Vargas se aproximava de seu possível fim diante das eleições marcadas para janeiro de 1938. Seus aliados, em especial nas Forças Armadas, precisavam de um plano para garantir a manutenção do governo. A solução foi se aproveitar do temor do comunismo, e utilizar esse medo comum como justificativa para um novo golpe de Estado.

Para isso, foi forjado o Plano Cohen: um documento, redigido por um capitão do Exército, que criava provas de um plano nacional organizado por comunistas para se apropriar do poder. “Quando Vargas viu o documento, ele usou isso para implementar o Estado Novo, sua nova ditadura. Nela, retorna a temática do terror comunista para justificar o autoritarismo”, conta Pradera.

No novo regime, a censura estatal à imprensa era legalizada, bem como a repressão a militantes do partido comunista. A propaganda tanto contra o comunismo quanto contra os demais inimigos do governo se intensificou e se institucionalizou com o surgimento do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

A situação mudou apenas em 1946, quando Vargas foi deposto por oficiais das forças armadas que retornaram da campanha na Segunda Guerra Mundial: conflito onde o Brasil lutou ao mesmo lado da socialista União Soviética, e Vargas se aliou ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

Era militar

A morte de Getúlio Vargas em 1953 não deu fim ao temor entre militares e setores conservadores da sociedade de um perigo comunista espreitando o poder. O avanço da Guerra Fria deu ao assunto uma evidência ainda maior, e a militância da União Democrática Nacional (UDN), principal partido de direita daquele período, não poupava esforços em deixar claro o desprezo pelo comunismo.

Na década de 1960, o terror comunista voltou aos holofotes quando o até então presidente Jânio Quadros condecorou o guerrilheiro Che Guevara com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul. “A ala conservadora da sociedade se enfureceu. E, para piorar, ele foi eleito por uma coligação com a UDN, que ficou transtornada com a situação”, aponta Pradera.

Com a renúncia de Jânio Quadros e a subida de João Goulart, do PTB (principal partido de esquerda daquele período), a narrativa anticomunista voltou a ganhar força. Em 1964, serviu novamente como desculpa para um golpe de Estado. “O golpe militar sempre foi nutrido e justificado pelo anticomunismo, ainda que não fosse essa a verdadeira intenção”.

Novamente, a repressão ao comunismo foi não apenas legalizada como estabelecida como prioridade: assim como no Estado Novo, veículos de imprensa voltaram a sofrer censura. Agências de segurança empenharam esforços na captura e execução de qualquer um considerado por elas como comunista. A ilha de Cuba, onde há um regime socialista até os dias de hoje, passou a ser retratada como um inimigo público pelo governo militar.

1989- primeiro uso eleitoral

O final da década de 1980 marcou tanto o colapso dos regimes militares na América do Sul quanto dos regimes socialistas no leste europeu. No Brasil, o país já caminhava para a sua segunda eleição presidencial em um novo regime democrático. No segundo turno, competia o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, contra Fernando Collor (PTB-AL), pelo PRN (atual Agir).

O cientista político André Pereira César conta que Collor abraçou o anticomunismo, mas desta vez buscando retratar seu adversário como defensor de uma ideia falida. “A eleição aconteceu justamente enquanto era exibida a queda do Muro de Berlim na televisão, com os regimes satélites da União Soviética caindo um após o outro. Collor aproveitou isso na campanha para dizer que Lula representava o atraso, que era o comunismo, que ele queria instaurar um regime que deu errado no mundo inteiro”.

A estratégia funcionou, e Collor foi eleito com 53% dos votos. Passadas as eleições, a narrativa do anticomunismo já não tinha mais força: a União Soviética caiu apenas dois anos depois, dando lugar a uma ordem mundial onde não havia mais um concorrente para o capitalismo.

Era Bolsonaro

André César explica que, após décadas de construção de uma narrativa pública no Brasil retratando o comunismo como um mal a ser evitado a qualquer custo, era uma questão de tempo para que algum ator político tentasse se aproveitar dessa memória coletiva para atacar seus rivais. Em 2018, o candidato Jair Bolsonaro obteve sucesso em fazer isso contra seu rival Fernando Haddad, do PT.

Nessa retomada do terror comunista, a narrativa já foi a associação do comunismo à corrupção. “Durante os três mandatos e meio do PT, a população se acostumou a ver os noticiários falando dos escândalos do Mensalão e da Operação Lava-Jato. Para o eleitor mais conservador, era fácil vender a ideia de que o governo PT era comunista e que a corrupção era praticada por conta do comunismo”, conta.

Com isso, Bolsonaro conseguiu atrair à sua pauta anticomunista, que o fez ganhar popularidade nos anos em que foi deputado federal, a pauta anticorrupção, um dos assuntos de maior peso na corrida eleitoral de 2018. “A partir daqui, o terror comunista passa a ser uma coisa puramente ideológica. Para o bolsonarista, o comunismo é uma representação do mal que precisa ser eliminado”, retrata o cientista.

O especialista acrescenta que, ao contrário dos seus antecessores, que usaram do anticomunismo como justificativa para suas ações, Bolsonaro e seus aliados utilizam o anticomunismo como ferramenta de mobilização. “Os eleitores replicam esse discurso como robôs. Eles estão convencidos de que enfrentar o comunismo é quase como salvar a civilização brasileira e a civilização continental”.

André César critica o discurso anticomunista, por entender se tratar de uma ideologia que não possui mais defensores de peso na política brasileira, e não haver mais o temor pelo comunismo ao redor do mundo. “As coisas ao redor do mundo mudaram, mas aqui continua um discurso do século XX. É uma discussão atrasada e que inclusive interdita os problemas centrais, as grandes questões que precisamos debater e enfrentar”.

Para o presidente, porém, a narrativa do terror comunista pode trazer recompensas nas eleições de 2022. “Bolsonaro convenceu o eleitor de que todo corrupto é comunista. Já que não existem os tais comunistas em seu governo, então não há corrupção. Agora ele busca convencer o eleitor que eles precisam manter ele lá, porque se os ditos comunistas ganharem, a corrupção volta”.


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