20/05/2024 - Edição 540

Comportamento

O dilema de denunciar familiares após atos golpistas

Enquanto muitos não sabem como lidar com parentes bolsonaristas que participaram de ataques em Brasília, outros ajudam a identificá-los. Retomar laços é dificílimo, aponta psiquiatra

Publicado em 12/01/2023 11:57 - Nádia Pontes (DW), Luciana Bugni (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Desde o último domingo (08/01), Valéria* não sabe do paradeiro dos primos, que deixaram São José do Rio Preto, interior de São Paulo, nos primeiros dias do ano para acampar em frente a um quartel em Brasília.

“Sabemos que eles foram detidos pela Polícia Federal. Minha prima mandou uma mensagem para a família, e depois ninguém mais soube nada. Parece que o irmão dela, meu primo, estava no meio do quebra-quebra”, conta Valéria por telefone à DW, referindo-se à invasão e depredação das sedes dos três Poderes, em Brasília, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Embora esteja empenhada em buscar informações para acalmar a família, Valéria lida com a desconfiança dos parentes, todos bolsonaristas. “Eles acham que eu não sou boa pessoa por não compactuar com a visão deles”, conta.

Aos poucos, a Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal tem divulgado a lista de presos após os atos violentos do último domingo. Segundo o Ministério da Justiça, cerca de 1.500 pessoas foram detidas e serão ouvidas pela Polícia Federal.

O nome do pai de Anderson* não apareceu na lista. Os dois romperam laços desde o primeiro turno das eleições presidenciais que deram vitória à Luiz Inácio Lula da Silva, e o filho não tem certeza se o pai foi até Brasília para participar da tentativa de golpe de Estado.

“Se ele tivesse sido preso, eu não sei o que faria, se eu deixaria ele lá para aprender”, diz.

Aposentado, o pai de Anderson frequentava o acampamento montado por bolsonaristas em frente ao Comando da Aeronáutica de São José dos Campos, interior de São Paulo. “Foram muitas brigas por causa disso. Mas eu acho que eu não denunciaria meu pai, apesar de tudo. A gente tenta salvar a pessoa até o último minuto”, admite.

“Nós versus eles”

Para muitos, denunciar um familiar próximo é um grande dilema – mesmo que ele tenha contribuído para as cenas de barbárie vistas em Brasília.

“Barbárie tem uma característica bastante requintada, que é a vontade pura e simples de destruir. Não só os objetos em si, mas de aniquilar o conjunto de valores e ideias, das bases de como a vida comunitária funciona, de como a civilização se coloca. É a minha cultura, o que eu sou, a minha verdade, versus as verdades do outro, que não podem existir junto com as minhas”, analisa Patricia Mattos, psiquiatra, psicoterapeuta e pesquisadora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Diante das imagens de vandalismo transmitidas pela TV e que circularam nas redes sociais, há, no entanto, quem tenha optado por revelar publicamente detalhes dos participantes.

“Alguns familiares identificaram as pessoas no ato. Alguns até denunciaram pessoas próximas para nós aqui da página”, respondeu à reportagem um dos administradores do perfil colaborativo Contragolpe, criado no Instagram para identificar quem usou a internet para divulgar a própria participação nos ataques.

Alguns dos nomes revelados já ajudaram a polícia a efetuar prisões, afirmam os criadores do perfil. “Tudo o que foi postado já foi encaminhado para o e-mail do Ministério da Justiça”, detalha um dos administradores, que trabalha voluntariamente e de forma anônima por questão de segurança.

Mais de 30 mil denúncias já foram recebidas no canal exclusivo criado pelo Ministério da Justiça para investigar os responsáveis pela violência na capital federal, afirmou o órgão à DW.

A volta para o convívio familiar 

Depois de trocar o convívio familiar pelo acampamento que pedia a intervenção militar, o pai de Ricardo* voltou a se trancar no quarto no último domingo. “Ele não foi a Brasília participar daquele quebra-quebra, mas tenho certeza de que fez doações em dinheiro para os que foram. Eu até desejei que ele fosse preso”, conta o filho, por telefone, à DW.

A família não sabe como lidar com essa situação e não consegue dialogar. “Ele não fala com minha mãe, não conversa comigo e faz postagens horríveis nas redes sociais. Não sabemos o que fazer”, lamenta Ricardo.

Marcos* tenta conviver com um extremista dentro de casa desde que o acampamento bolsonarista em São José dos Campos foi desmobilizado. “Meu pai ficava apitando em frente ao quartel. Ele diz que se precisar entrar em guerra, ele entra para ‘defender’ o Brasil do comunismo. É surreal. Não tem argumento que fique de pé numa conversa com ele, virou uma religião”, afirma.

Retomar laços com os que optaram pela barbárie, aponta Mattos, é dificílimo. “A barbárie nos leva a um lugar de completo vazio do diálogo, não há construção, não há troca. As pessoas que entram nesse tipo de estado e comportamento geralmente passaram por situação de exclusão, violência, e muitas vezes abraçam isso com uma forma de resposta”, comenta a psiquiatra.

No Ministério da Justiça, a expectativa é que o número de denúncias aumente e que a investigação seja rigorosa. “Os dados dos denunciantes e as informações repassadas serão mantidas sob sigilo. Todos os casos serão devidamente apurados junto às autoridades competentes e os participantes responderão criminalmente”, afirmou o órgão à DW.

Provas contundentes

A apuração dos crimes passa por uma análise individualizada das provas. Não faltam vídeos e selfies dos participantes mostrando o ambiente vandalizado, incitando outros a fazerem o mesmo ou elogiando os atos.

“Usar no processo esse material publicado em redes sociais não é ilícito e me parece uma prova contundente”, analisa Helena Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

É possível que, em alguns casos, seja necessário complementar o quebra-cabeça com outros itens, como testemunhas e geolocalização dos celulares dos suspeitos. “É importante ressaltar que uma pessoa que financia, que paga alguém para fazer os atos, pode ser responsabilizada. É a mesma analogia que se faz com o mandante de um homicídio”, pontua Costa.

Os crimes cometidos vão de lesão corporal, como os casos de agressões contra policiais e jornalistas, a crime de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado.

“O que o Código Penal traz como componente criminoso é a tentativa de depor um governo democraticamente eleito. Eu não preciso conseguir dar o golpe para caracterizar o delito. As práticas consistiam na invasão das sedes dos três Poderes da República, me parece que existia uma intencionalidade muito clara de se atentar contra as instituições democráticas”, justifica Costa.

As penas previstas vão de 4 a 12 anos de prisão.

‘Não sei se sinto dó ou raiva’: o que dizem as famílias de golpistas

“Meus familiares já eram bolsonaristas antes de Bolsonaro aparecer”, diz Roberto Lemos, 38, publicitário baiano que vive em São Paulo. Ele se refere aos parentes que passaram os últimos anos em discussões com o restante da família para defender o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e, principalmente, para atacar a esquerda.

Nos últimos meses, as discussões e fake news em grupos de WhatsApp e conversas inflamadas nos almoços de família mudaram para a frente do quartel em Salvador — e culminaram em desculpas de que a destruição causada pela tentativa de golpe em Brasília, no domingo (8), não teve participação dos grupos golpistas (teve).

Três tias de Roberto passaram os últimos meses em acampamentos, com o objetivo de levar comida e água aos “bravos guerreiros brasileiros”. “Essa história começou em 2014, com elas defendendo a direita. Ali começaram as brigas, mas longe desse estágio doentio”, conta. No Natal de 2019, após algumas provocações, ele desistiu de frequentar as festas de família. Mas sente pela mãe, que sofre com o distanciamento dos irmãos.

“Ela me liga muito triste. É o alvo de todos que se retroalimentam da agressividade e ficam tentando caçar confusão. Acabaram os argumentos reais e lógicos a favor de Bolsonaro e eles passaram a usar uma narrativa própria que diz ‘deu no WhatsApp’. Parece um mundo paralelo em que as fake news são a lei”, conta Roberto. Entre as notícias falsas, a de que petistas infiltrados vandalizaram o patrimônio público em Brasília.

“Parece que o ego deles não deixa assumir que algo deu errado. Ninguém consegue dar o braço a torcer e admitir [o erro]. Enquanto isso, minha mãe fica isolada e, apesar de se preocupar muito em não destruir a família por causa de política, acaba sendo apedrejada. Chegou a um ponto que minha família — inteira baiana — afirma que nordestino precisa se dar mal, já que o Nordeste votou no Lula.”

‘Avós agressivos’

F.B., 43, passou a ceia de Natal na casa dos sogros porque os filhos adolescentes estavam com saudade dos avós. Mas o clima não era dos melhores: desde as eleições, o casal estava frequentando o acampamento golpista em frente ao quartel da avenida Alfredo Pujol, em Santana, na zona norte de São Paulo.

“Eles iam todo dia, levavam megafones e caixas de som… Não sei se sinto dó por acreditarem e compartilharem mentiras ou se fico com raiva”, diz F.B., que preferiu não se identificar para não “piorar a situação”. Sua mulher, J.A., 38, desistiu de argumentar com os pais. Quando eles mandam notícias mentirosas no grupo, ela se limita a digitar “fake”.

Na ceia de Natal, F.B. até tentou explicar que o correto seria aceitar o resultado das eleições, mas o resto da família desencorajou o diálogo. O neto, de 14 anos, reclamou que o avô ficou ainda mais radical desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), postando todos os dias notícias mentirosas ou montagens.

Desde domingo, após a tentativa de um parente explicar que o golpe era errado e todos condenarem o vandalismo no Congresso, o pai de J.A. saiu do grupo de WhatsApp e se recusou a falar com qualquer outro familiar. “Meus filhos sabem diferenciar e não partem para o conflito. Mas, por outro lado, me corta o coração que eles vejam os avós tão agressivos assim”, ele diz.

‘Não foi da noite para o dia’

“Convidamos minha tia para passar o Natal com a gente, em São Paulo, mas ela afirmava que teria uma guerra no país e não sairia de Florianópolis”, contou D.Z, 47, que trabalha com marketing digital. A tia frequentou os acampamentos em frente aos quartéis até domingo (8).

No grupo da família, D.Z. tinha contato diário com a tia, que mora a 700 km de distância. “Todo mundo posta fake news e montagens o tempo todo. Logo se percebe que não têm veracidade, mas evitamos conversar sobre o assunto para não ter embate. Adotamos essa filosofia de não dar palco para eles porque nessas situações não tem conversa, sempre vira uma verbalização mais exaltada”, diz. A idosa filmava o grupo (muitos idosos, todos amigos) no quartel, pedia apoio do Exército, compartilhava os vídeos por WhatsApp e voltava para casa.

“O que aconteceu no domingo não foi da noite para o dia. O que se vê é um fanatismo que parece saudosismo. Aprendi na escola que a ditadura não foi um período bom, mas eles parecem sentir falta de algo que aconteceu nessa época”, diz D.Z., que mostrou posts que circulam no grupo — entre eles, fake news sobre morte de idosos presos em Brasília, quando, na verdade, todos os idosos foram liberados até terça (10).

“Sempre existiu uma oposição, mas nunca houve essa polaridade violenta. As pessoas se afastaram, amigos foram bloqueados. A gente sente falta da época em que as pessoas não tinham tanta raiva assim e podiam apenas discordar”, afirma, desapontada.


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