Eles em Nós
Idelber Avelar analisa o Bola de Ouro
Publicado em 29/10/2024 10:59 - Idelber Avelar
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Vou tentar oferecer meus dois centavos sobre essa lambança constrangedora que aconteceu ontem no futebol mundial.
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Em primeiro lugar, devo dizer que nunca me importei com Bola de Ouro, porque não me importo com prêmios individuais em futebol. Alguns torcedores conseguem comparar com facilidade, mas eu não me julgo em condições de comparar um goleiro, um volante e um atacante para decidir quem é maior. Aliás, as discussões sobre qual jogador ou qual clube é maior me entediam bastante.
Dito isso, pelos próprios critérios que ela usa, a Bola de Ouro deveria ter sido dada ao Vinícius. Tradicionalmente, esse prêmio é dado a jogadores de ataque, que tiveram muitos gols e assistências e conquistaram títulos importantes. Durante mais de uma década, Messi e Cristiano Ronaldo se alternaram nesse prêmio, e foi nessa época que ele passou a valer mais do que deveria—tanto por causa da rivalidade entre os dois como pelas brigas dos grupos de apoiadores que se engalfinham até hoje na internet.
Para nós, brasileiros, o prêmio também ganhou mais importância a partir do jejum de títulos da Copa do Mundo da seleção. Se não conseguimos mais ser campeões do mundo, pelo menos que um brasileiro ganhe a Bola de Ouro. O último a ganhar foi Kaká, em 2007.
Acho absurdo o prêmio dado a Rodri? Não acho. Rodri é um jogador extraordinário. Tem uma capacidade de leitura do jogo sem igual. Seus passes são de uma precisão absurda. Ele torna melhores todos os jogadores à sua volta. Os números do Manchester City com e sem Rodri falam por si. O time não perde de ninguém quando ele está em campo.
Nas 5 principais ligas da Europa, na temporada 2023-24, Rodri foi o 1º em títulos conquistados (4), 1º em bolas recuperadas (424), 1º em ações com a bola (7.293), 1º em passes certos (6.009), 1º em bolas longas certas (439). Quem trabalha com analítica de futebol sabe como são absurdos esses números, e como é raro que um único jogador lidere as principais ligas do mundo em todas essas categorias.
Rodri é o antídoto de Vini em tudo. Nem de longe é espetacular como Vini em campo, claro (e um volante nem teria como sê-lo). É branco, europeu, nunca se envolve em polêmicas, tem diploma universitário e fala de maneira mansa e edificante. Ou seja, ele é tudo o que a UEFA quer em um embaixador.
Mas deu tudo errado. Os vazamentos da semana passada, que sugeriam que Vini ganharia o prêmio, o levaram a queimar a largada e preparar uma festa. A coisa começou a ter um cheiro de que havia sido feita de propósito, para humilhá-lo.
Quando o Real Madrid soube que Vini não ganharia a Bola de Ouro, o clube decidiu cancelar a ida de todos a Paris, inclusive de Carlo Ancelotti, que receberia o prêmio de melhor técnico, e do próprio Florentino Pérez, presidente do Madrid, que receberia o prêmio dado ao clube do ano. Ninguém do Madrid foi.
Para piorar, Rodri, que não tinha nada a ver com a situação, foi vaiado ao chegar de muletas na cerimônia. Levemente, mas foi. Do lado de fora, jovens franceses e francófonos, a maioria negros, cantavam o nome de Vini. Na publicação da France Football que anuncia o prêmio, mais da metade dos comentários são xingamentos ou fotos de Vini. Dezenas de jogadores importantes do presente e do passado (Cristiano Ronaldo, Tony Kroos, Seedorf e muitos outros) publicaram posts dizendo que, para eles, Vini é o melhor do mundo. O prémio nunca havia sido contestado abertamente assim, por boleiros do mundo todo.
Foi, de longe, a Bola de Ouro mais desastrada da história. A UEFA queria fugir do tema do racismo e não percebeu que, para isso, o mais aconselhável era dar logo o raio do prêmio a Vini. Evitando o jogador brasileiro de forma tão deliberada, só conseguiram colocar de novo o tema no centro da pauta.
Deu tudo errado para eles, e talvez este tenha sido o saldo positivo do prêmio deste ano. Ele deixou claro, de uma vez por todas, que a Bola de Ouro é uma matéria de negócios, relações públicas e geopolítica. Ela tem muito pouco a ver com o futebol.
Futebol é outra coisa.
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IDELBER AVELAR
Professor titular na Universidade Tulane (EUA), é autor de “Alegorias da Derrota” (UFMG), “Figuras da Violência (UFMG) e “Eles em Nós; Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século 21 (Record). Prepara um livro sobre a memória e o futebol
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