20/05/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O Último Conservador Cristão

Publicado em 25/09/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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A história brasileira é marcada por êxitos e infortúnios, como qualquer outra nação. Tudo bem: talvez a cesta dos infortúnios seja um pouco mais pesada. Das coisas que não tivemos a felicidade de desfrutar pelos caprichos do destino, acho lamentável a ausência de Mr. Rogers nas nossas TVs.

Fred Rogers foi um pastor americano que, ao voltar do seminário, deparou-se com uma fantástica invenção: um aparelho de televisão. Fascinado, enxergou naquela nova tecnologia um poderoso instrumento para educação infantil.

No dia 19 de fevereiro de 1968, o programa "Bem-vindo à Vizinhança" estreiou. Mr. Rogers entrava pela porta da frente do cenário que representava uma casa, trajando terno e gravata, como se tivesse acabado de chegar do trabalho. Cantarolando uma música sobre a beleza do dia e as alegrias de se ter vizinhos, abria o armário, pendurava o paletó, vestia um casaco de lã e trocava os sapatos por tênis. Em seguida, dedicava-se a contar histórias e explicar coisas com sensibilidade e respeito à inteligência dos pequeninos. Coisa rara naquele tempo e agora. O sucesso foi quase instantâneo e o programa passou a ser transmitido nacionalmente pela TV estatal americana.

Não havia desenhos animados, gritaria ou comerciais de brinquedos. Tampouco havia assunto "difícil" que não pudesse ser abordado. Roger fez episódios sobre luto. Sobre a Guerra do Vietnã, o assassinato de Bob Kennedy, a explosão do ônibus espacial. Falava sobre discriminação racial, divórcio e tudo mais que julgava relevante para os pequenos telespectadores.

A mensagem universal do programa era simples. "Você é especial do jeitinho que você é." Um conceito que Rogers considerava fundamental para o desenvolvimento emocional de uma criança, e igualmente central à doutrina cristã, onde todos somos filhos de Deus e dignos de seu amor.

"A Vizinhança" ficou no ar mais de 40 anos e formou gerações de baixinhos, competindo com os desenhos-comerciais de brinquedos dos anos 80 e as mega produções das emissoras privadas.

Fred faleceu em 2003. Seu sepultamento foi marcado pelo protesto de grupos cristãos fundamentalistas carregando cartazes que afirmavam que "Mr. Rogers queimará no inferno" por ser tolerante com homossexuais. Na Fox News, emissora à cabo de alinhamento conservador, o apresentador não recebeu melhor tratamento: vários comentaristas insinuavam que a mensagem "você é especial" do Mr. Rogers criou uma geração de mimimizentos que querem tudo "de mão beijada". Como se a ideia fosse de Rogers, e não o conceito central no Novo Testamento.

Há um belíssimo documentário sobre o assunto chamado "Won't You Be My Neighbor", na Netflix que recomento bastante para os que queserem ver Mr. Rogers em ação. É emocionante. No final do ano, Tom Hanks vai interpretá-lo numa cine biografia, o que deve ser uma justa redenção a uma personalidade cuja história foi soterrada na intolerância da era Trump.

Republicano de carteirinha, eleitor de Ronald Reagan, pastor: apesar disso tudo, Roger morreu renegado pela direita norte-americana. Sua visão tolerante, inclusiva – e por tudo isso, cristã – de mundo tornou-se tóxica para o conservadorismo. Fred, que fazia arte e educação sob premissas de fé no ser humano e união, faz falta num mundo de religiões intolerantes. Provavelmente, foi o último americano conservador a viver à risca a mensagem de amor ao próximo ensinada por Jesus. O último conservador cristão, num mundo repleto de cristãos conservadores.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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