09/05/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Indígenas decretam emergência climática e fazem vigília no STF contra marco temporal

Sala no Planalto sobre os povos indígenas enfim sai do controle militar do GSI

Publicado em 27/04/2023 10:22 - RBA, Rubens Valente (Agência Pública) – Edição Semana On

Divulgação Joédson Alves/Agência Brasil

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Em marcha em Brasília, cerca de 6 mil indígenas que participam da 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL 2023) decretara Emergência Climática. O protesto chama atenção para o racismo ambiental e as violações causadas contra os povos originários pelas mudanças no clima.

O ato foi precedido por uma plenária que debateu a principal pauta do movimento, a demarcação de Terras Indígenas (TIs) e seu peso tanto para a democracia brasileira como para o debate climático. De acordo com o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, a intenção da marcha é reforçar o papel que as TIs desempenham no enfrentamento ao aquecimento global, já cientificamente comprovado.

Uma pesquisa divulgada no ano passado pela organização, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a partir de dados do MapBiomas, mostrou que as terras indígenas têm sido um escudo contra o desmatamento. Enquanto 29% do território ao redor das TIs está desmatado, dentro delas o desmatamento é de apenas 2%. “Não existe solução para a crise climática sem os povos indígenas e a demarcação plena das nossas terras”, destaca o coordenador.

Governo deve homologar novas TIs

O ato também denuncia os impactos das mudanças climáticas sobre os povos indígenas. Embora não sejam agentes da destruição, eles são altamente vulneráveis por dependerem dos recursos naturais e da biodiversidade. Nesse sentido, os indígenas também cobram participação no processo de elaboração de políticas públicas sobre o tema. A retomada das demarcações, paralisadas pelo governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), também é considerada fundamental nesse processo.

Durante a campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se comprometeu a destravar a pauta nos primeiros 100 dias de seu governo, o que não aconteceu. No último dia 15, a ministra dos Povos Indígenas, Sónia Guajajara, afirmou, contudo, que o governo federal vai anunciar a homologação de novas áreas nos próximos dias. A expectativa é que a confirmação seja feita pelo próprio Lula, durante sua visita no último dia do ATL, na sexta (28).

A presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, que também foi ao acampamento ontem, citou que há a conclusão dos pareceres técnicos relativos a 14 áreas reivindicadas como terras indígenas. “Temos 14 processos preparados pela Funai, que já encaminhou (à Casa Civil) os pareceres. Está tudo preparado. Vamos aguardar o presidente assinar (as homologações)”, afirmou Joenia.

Indígenas no STF

Enquanto a demarcação é a maior demanda dos povos originários ao Poder Executivo, no Judiciário eles cobram a inconstitucionalidade do chamado marco temporal. O julgamento do caso se arrasta há anos na Corte que, apenas após pressão social, marcou a retomada do processo para o dia 7 de junho.

Defendido por ruralistas, o marco temporal estabelece que a data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, deve ser adotada para a definição da ocupação tradicional da terra por indígenas. O que é contestado. Segundo os povos originários, muitos grupos foram retirados de seus territórios sem o reocupar até a data da Constituição. E, com o marco temporal, eles podem perder o direito à sua terra tradicional.

Até o momento, o julgamento no STF está empatado em 1 x 1. O relator do caso, ministro Edson Fachin, manifestou-se contra a aplicação da tese. Para ele, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito de permanência desses povos independentemente da data da ocupação. No entanto, o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, votou a favor dos ruralistas. Além de exigir a inconstitucionalidade da tese, em vigília hoje, os movimentos também realizam plenária sobre o tema nesta quinta (27).

Balanço do ATL 

Nos últimos quatro dias, em meio ao ATL, deputados e senadores ligados à causa indígena instalaram uma Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas no Congresso. O objetivo da iniciativa é promover e defender os direitos das 305 etnias identificadas pelo IBGE no Censo Demográfico de 2010.

A frente é coordenada pela deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) e pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Sala no Planalto sobre os povos indígenas enfim sai do controle militar do GSI

A “Sala de Situação Nacional” (SSN) sobre os povos indígenas no país, criada no Palácio do Planalto durante o governo de Jair Bolsonaro e desde então entregue à coordenação de militares do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), passará, quatro meses depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, ao controle civil no MPI (Ministério dos Povos Indígenas). A decisão foi tomada duas semanas atrás, portanto antes e sem relação com a exoneração do ministro do GSI, o general Gonçalves Dias, após a divulgação de vídeos da tentativa golpista de 8 de janeiro.

As reuniões quinzenais da SSN ficarão agora sob a coordenação da antropóloga Beatriz de Almeida Matos, que no governo Lula foi nomeada pela ministra Sonia Guajajara no cargo de diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do MPI. Ela é professora da Faculdade de Ciências Sociais e da pós-graduação em Antropologia pela UFPA (Universidade Federal do Pará) e pesquisadora de campo na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas. Naquela região, seu marido, o indigenista Bruno Pereira, e o jornalista Dom Phillips foram assassinados em junho de 2022.

Desde a posse de Lula, para desconforto dos indígenas e indigenistas que participam do grupo, as reuniões da SSN continuaram sendo coordenadas pelos mesmos militares indicados durante a gestão de Augusto Heleno. A Agência Pública revelou o problema em fevereiro, mas as quatro reuniões que ocorreram nos dois meses seguintes continuaram sob a coordenação dos mesmos militares.

O coordenador jurídico da APIB, Maurício Terena, disse à Pública em fevereiro: “A gente esperava que [após a posse de Lula] aqueles militares não mais estariam ali. E eles permanecem. É uma situação que de fato constrange. É um resquício. A imagem deles representa aquele momento tão trágico que a gente viveu”. A SSN era coordenada desde 2021 por um coronel da FAB (Força Aérea Brasileira), Ivan Lucas Karpischin, auxiliado por um tenente-coronel do Exército, Ricardo da Silva Vieira.

Desde fevereiro, a Pública procurou duas vezes o Palácio do Planalto, via Secom (Secretaria de Comunicação), para saber os motivos da decisão de continuar militarizando uma área do governo de alto interesse dos povos indígenas. Em ambas as vezes, a Presidência nada respondeu. A transferência da SSN para o Ministério dos Povos Indígenas não foi informada pela Secom.

A saída dos militares e a transferência ao MPI foram comunicadas aos participantes da mais recente reunião da SSN, realizada no último dia 14. Conforme a ata da reunião daquele dia, entregue pela AGU (Advocacia Geral da União) ao STF no último dia 20, a antropóloga Beatriz Matos ressaltou, como representante do MPI, “a importância do protagonismo do MPI para a participação dos povos indígenas nas questões afetas aos seus interesses”. Ela também “destacou a disponibilidade do GSI com relação à troca de informações que visam à transição”. Informou ainda que na “semana seguinte devem ocorrer reuniões para discutir a ordem de prioridade das TIs [terras indígenas] a serem tratadas no âmbito da SSN”.

Sala foi criada sob pressão do STF

A SSN também mudará de endereço, saindo de uma sala do GSI no Planalto para o ministério de Sonia Guajajara. O aparato foi criado em 2020 pelo então ministro Augusto Heleno sob pressão de decisões do ministro no STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso ao longo da sua relatoria na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) número 709. A ação foi ajuizada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e partidos de oposição ao governo Bolsonaro frente à denunciada omissão do governo federal na condução de políticas de proteção dos povos indígenas durante o enfrentamento à pandemia da Covid-19. Com o passar do tempo, a SSN também foi instada pelo STF, a pedido dos indígenas, a monitorar e fazer cumprir as determinações do tribunal sobre sete terras indígenas invadidas por garimpeiros, madeireiros, caçadores e todo tipo de intrusos ilegais no país. Invasões que aumentaram e bateram recordes durante o governo Bolsonaro.

Acolhendo a manifestação dos indígenas, que mostravam várias divergências entre a realidade observada nas aldeias e o que o governo Bolsonaro dizia nos autos da APDF 709, Barroso determinou que o Executivo criasse um ambiente de diálogo entre governo e indígenas e incluísse integrantes de outros órgãos afetos ao tema.

O papel dos militares do GSI era coordenar os encontros, dos quais também participam representantes da DPU (Defensoria Pública), do MPF (Ministério Público Federal), de organizações não governamentais e outros ministérios, como Saúde e Justiça.

A instalação da SSN demonstrou a incapacidade de o governo promover, por conta própria, políticas públicas corretas e revelava a desconfiança do STF sobre o Executivo. Na época, o militar Augusto Heleno fez ataques públicos ao movimento indígena. Em setembro de 2020 (a ADPF foi ajuizada em junho daquele ano), o ministro acusou, em tom conspiratório, por meio de postagens no Twitter, a APIB de “estar por trás” de uma campanha publicitária que naquela época denunciava a (real) destruição da Amazônia. Heleno disse que os objetivos eram “publicar fake news contra o Brasil” e “manchar a nossa imagem no exterior, em um crime de lesa-pátria”. Heleno escreveu ainda que Sonia Guajajara, então coordenadora da APIB e hoje ministra dos Povos Indígenas, era “ligada ao ator Leonardo Di Caprio, crítico ferrenho do nosso país”. O astro de Hollywood é um defensor da Floresta Amazônica e dos indígenas brasileiros.

Em reação a essas acusações, a APIB e Sonia Guajajara protocolaram no STF uma queixa-crime contra Augusto Heleno por difamação, ou seja, imputar a alguém “fato ofensivo à sua reputação”. A APIB e Sonia apontaram que Heleno “tem pleno direito a opiniões; mas não tem direito de imputar fatos inverídicos contra as querelantes [Sonia e APIB], notadamente ao afirmar que têm por objetivo (i) publicar fake news contra o Brasil; (ii) imputar crimes ambientais ao presidente; e (iii) apoiar campanhas internacionais de boicote a produtos brasileiros. Todas essas atividades são, além de direta e simplesmente mentirosas, muito nocivas à honra objetiva das querelantes que se dedicam à proteção dos direitos dos povos indígenas, incluindo o direito a um meio ambiente preservado e sustentável”.

Em março de 2021, Heleno argumentou ao STF que as suas publicações no Twitter “são desprovidas da mais comezinha pretensão de atingir a honra pessoal das querelantes”. “Trata-se de mera manifestação de desapreço da autoridade máxima da segurança institucional do País, [sic] contra as condutas das querelantes”, alegou o general. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi nomeado duas vezes por Jair Bolsonaro para o cargo, pediu ao STF o arquivamento da queixa-crime, citando a “extinção da punibilidade pela decadência (que inviabiliza a emenda à inicial), seja em razão da atipicidade das condutas atribuídas ao querelado [Heleno]”. Aras disse que as publicações de Heleno no Twitter não tiveram “intenção difamatória”.

O ministro relator no STF, Dias Toffoli, acolheu os argumentos de Heleno e de Aras e decidiu, em setembro de 2022, pelo arquivamento da ação.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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