20/05/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Garimpo, violência e morte: relatório mostra política de destruição do povo Yanomami

Bolsonaro retomou genocídio indígena de onde ditadura militar havia parado

Publicado em 25/01/2023 4:05 - Edson Sardinha (Congresso em Foco), Leonardo Sakamoto e Josias de Souza UOL) - Edição Semana On

Divulgação Urihi Yanomami

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Principal motivo da crise humanitária vivida pelos yanomami, segundo especialistas, o garimpo ilegal não é novidade na terra indígena, que enfrentou pela primeira vez a sanha de depredadores na década de 1980. A nova invasão, porém, atingiu níveis inéditos de crescimento nos últimos anos: explodiu 3.350% apenas entre 2016 e 2020, aponta o MapBiomas, rede colaborativa de mapeamento de solo, fogo e água. A situação tende a ter se agravado de lá para cá. Relatório de entidades socioambientais com atuação na região indica que a área total destruída pelo garimpo na terra indígena Yanomami passou de 1.200 hectares, em outubro de 2018, para 3.272 hectares, em dezembro de 2021. A exploração se acentuou principalmente após o segundo semestre de 2020.

Elaborado pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com supervisão técnica do Instituto Socioambiental (ISA), o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e Propostas para Combatê-lo” reúne dezenas de fotos aéreas que denunciam a ação de garimpeiros na região, com uso de substâncias tóxicas como o mercúrio, abertura de pistas de pouso clandestinas, devastação de rios e matas e construções ilegais em meio a casas coletivas indígenas.

Omissão de socorro

O documento é considerado o estudo mais completo sobre a atuação de garimpeiros na terra dos yanomami. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças da região morreram no ano passado, sobretudo por desnutrição, malária, pneumonia e diarreia. A pasta estima que ao menos 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome nos últimos quatro anos, durante o governo de Jair Bolsonaro. O ex-presidente ignorou 21 pedidos de socorro e é apontado por organismos que apoiam os indígenas como principal responsável pela tragédia humanitária, que também ameaça outros povos.

“Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas”, alertam as entidades no relatório publicado em abril do ano passado. Os indígenas convivem ainda com ataques e ameaças da mais famosa facção criminosa de São Paulo.

Demarcada em maio de 1992, a terra Yanomami ocupa uma área equivalente à de Portugal e se distribui entre os estados de Roraima e Amazonas. O levantamento revela que 273 comunidades, abrangendo mais de 16 mil pessoas, o equivalente a 56% dos yanomami, são prejudicadas diretamente pelo garimpo ilegal. O território é formado por 350 comunidades que somam 29 mil pessoas.

Incentivo ao crime

Uma série combinada de razões explicam o ritmo acelerado do garimpo na região, segundo o relatório:

1) O aumento do preço do ouro no mercado internacional;
2) Falta de transparência na cadeia produtiva do ouro e falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente;
3) Fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas;
4) Agravamento da crise econômica e do desemprego no país, produzindo uma massa de mão de obra barata à ser explorada em condições de alta precariedade e periculosidade;
5) Inovações técnicas e organizacionais que permitem as estruturas do garimpo ilegal se comunicar e se locomoverem com muito mais agilidade; e
6) A política do governo Bolsonaro de incentivo e apoio à atividade, apesar do seu caráter ilegal, produzindo assim a expectativa de regularização da prática.

Escolhas políticas

Para as entidades autoras do documento, o garimpo ilegal não é problema sem solução porque, com exceção do aumento do preço do ouro, os demais fatores que têm feito a exploração mineral avançar na região estão relacionados a escolhas políticas adotadas que favorecem a expropriação de recursos naturais.

“O garimpo dos dias atuais é uma atividade financiada por empresários com alta capacidade de investimento e que concentram a maior parte da riqueza extraída ilegalmente da floresta yanomami. Investigações da Polícia Federal revelaram que estes empresários são membros da elite econômica local ou figuras de outros estados com operações em Roraima.O dinheiro ilícito obtido com a prática é frequentemente lavado em negócios legais na cidade de Boa Vista ou alhures, como supermercados, postos de gasolina, restaurantes, entre outros”, diz o relatório.

Embora não haja estimativa de quanto é movimentado com a exploração legal de minérios na região, há cifras que dão dimensão da fortuna alavancada. Em 2021, o Ministério Público Federal processou um empresário de Boa Vista por envolvimento no garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. As investigações indicaram que o acusado movimentou mais de R$ 425 milhões em dois anos, recurso incompatível com sua capacidade financeira declarada, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O grupo liderado pelo empresário utilizava uma empresa de táxi aéreo e outra de poços artesianos para o transporte de insumos e mão de obra para as áreas de garimpo, serviço que era pago em ouro, apontaram as investigações.

Sem constrangimento

O relatório detalha os efeitos do garimpo em várias comunidades da terra indígena. A calha do rio Uraricoera é considerada a macrorregião mais impactada. Ela concentra mais de 45% do total de cicatrizes mapeadas, e também apresenta os maiores acampamentos e as mais complexas estruturas de apoio ao garimpo, com diversos canteiros, acampamentos e corrutelas.

Parte dessa vulnerabilidade, explicam as entidades, deve-se ao fato de que esse rio, diferentemente dos demais, pode ser acessado por via fluvial “sem quaisquer constrangimentos por parte dos órgãos de proteção”, uma vez que a Base de Proteção Etnoambiental (Bape) local encontra-se desativada. “Em 2017, o Ministério Público ajuizou uma ação que pede a reativação de todas as Bases de Proteção Etnoambientais (Bapes) da TIY, dentre elas a Bape Korekorema, que tem a função de controlar o acesso a este rio. A decisão do juiz foi favorável à reabertura, mas até o momento a União não cumpriu plenamente a sentença. A demora no seu cumprimento é um fator de grande fragilização da proteção territorial da TIY”, aponta o documento.

Pistolas e fuzis

O relatório também chama a atenção para a mudança no comportamento e perfil dos garimpeiros que atuam na comunidade do Palimiu. “Se antes apenas os barqueiros transitavam encapuzados, agora outros homens também o faziam, vestidos quase sempre de roupas pretas. As armas também haviam mudado. De espingardas de caça, passaram a circular com pistolas e fuzis. E, a abordagem nas comunidades tornou-se mais agressiva e violenta. Há relatos de garimpeiros bêbados invadindo casas e assediando mulheres, e de gritos de ameaça durante encontros furtivos no rio: ‘Vamos acabar com os yanomami’, diziam.”

Em 10 de maio de 2021, sete embarcações com homens armados, vestidos de coletes e balaclavas, se aproximaram da comunidade Yakepraopë e abriram fogo contra seus moradores, incluindo mulheres e crianças, por volta das 11 horas da manhã. Na fuga, duas crianças morreram.

PCC

“Áudios de WhatsApp que circulavam em grupos de garimpeiros, e que depois vieram a público, davam notícias sobre a participação de membros de organizações criminosas no ataque: ‘uma canoa da facção estava descendo com mais de 20 homens armados com metralhadoras e fuzis’ para ‘pegar o pessoal que roubou combustível’. Outras mensagens sugeriam a intenção dos criminosos de dar continuidade aos ataques e do desejo de vingança pelos homens feridos no revide com arco e flecha que os Palimiutheri conseguiram realizar.”

A suspeita de que a facção criminosa mais famosa de São Paulo estava por trás dos ataques fez com que as forças de segurança fossem acionadas. Ao chegarem em Yakepraopë, contudo, os policiais foram recebidos a tiros pelos homens do garimpo. Mesmo com o respaldo de decisões judiciais, as forças policiais mantiveram-se no local apenas de forma intermitente, visitando a comunidade quinzenalmente e permanecendo por poucos dias. Depois dos ataques, a região permaneceu a maior parte do tempo sob o signo do terror, vários outros aconteceram durante os meses de maio, abril, junho e julho.

Malária

A ação dos garimpeiros faz mal à saúde. Houve uma explosão de casos de malária nos pólos-base que compreendem a macrorregião Uraricoera, Palimiu e Waikás. Só no Palmiu, que reunia pouco mais de 900 pessoas em 2020, foram registrados 1.800 casos da doença. Ou seja, média de quase dois casos por pessoa.

Só em 2022 foram confirmados 11.530 casos de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. O número corresponde a 40% de toda a população do território. Estima-se que mais de cinco mil crianças estejam desnutridas ou passem fome. Além de disseminarem substâncias tóxicas na região, garimpeiros também têm bloqueado a visita de profissionais de saúde às aldeias yanomami desde que assumiram, nos últimos anos, controle de polos de saúde e de pistas de pouso, segundo o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana, Junior Hekurari Yanomami.

“Além disso, a situação de insegurança generalizada imposta pelo aumento da circulação de garimpeiros armados nas diferentes regiões da TIY tem causado transtornos ao atendimento à saúde às comunidades indígenas, com o total abandono de postos de saúde em alguns casos (a exemplo de Palimiu) e, inclusive, a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo (a exemplo de Homoxi). Também é comum a queixa do desvio de medicamentos reservados para os indígenas para atendimento de garimpeiros”, sustenta o relatório.

Fome

Também conhecida como paludismo, a malária compromete não apenas a saúde individual do doente, mas também a economia das comunidades que dependem da força de trabalho familiar para produzir sua subsistência. “Um homem que deixa de abrir um roçado no período de estiagem por estar debilitado pela malária terá no futuro maiores dificuldades de sustentar a si mesmo e os seus co-residentes, criando assim um ciclo vicioso de malária, crise econômica e fragilização social. É, pois, justamente no cenário de extrema vulnerabilidade que o garimpo avança e busca aliados entre jovens indígenas, acelerando ainda mais a tragédia local.”

Muitos indígenas também se veem impedidos de caçar ou plantar por causa das constantes ameaças feitas por garimpeiros. “Em muitos relatos, os membros das comunidades disseram sofrer com a restrição a seu livre trânsito na Terra Indígena, deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça, e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário.”

Recomendações

O relatório indica uma série de medidas para controlar o assédio ao território e ao povo Yanomami. O primeiro passo, sugere, passa pela atuação eficiente e coordenada do Estado e a articulação entre os órgãos e agentes responsáveis. Veja alguns pontos recomendados contra o garimpo ilegal:

– Desenvolvimento e retomada de uma estratégia de Proteção Territorial consistente, capaz de deflagrar operações regulares de desmantelamento dos focos de garimpo e a manutenção das Bases de Proteção Etnoambientais nos locais estratégicos. A operação das BAPEs deve contar com o apoio dos Yanomami que vivem nas regiões afetadas , que podem e devem ser capacitados e remunerados para atuarem na vigilância e proteção do seu território, bem como para auxiliarem na obtenção de informações relevantes aos órgãos competentes pela fiscalização das atividades ilícitas associadas ao garimpo.

– Realização de operações de extrusão e repressão à atividade ilegal nas zonas atualmente impactadas. As operações devem: (i) inutilizar as pistas de pouso clandestinas e as aeronaves apreendidas, (ii) garantir a reocupação dos postos de saúde e pistas de voo comunitárias que hoje se encontram sob controle dos garimpeiros; (iii) promover a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro com o objetivo de impedir a rápida retomada da exploração, (iv) atuar rotineiramente, adaptando as áreas prioritárias com base em informações atualizadas sobre o avanço da atividade nas diferentes regiões da TIY.

– Ampliar a fiscalização permanente de aeródromos privados situados nos arredores da TI Yanomami que funcionam como centros de distribuição logística do garimpo ilegal, e a fiscalização dos postos que comercializam combustível de avião.

– Intensificar o papel das agências reguladoras na região, como a Anatel e a Anac, para identificar e responsabilizar pessoas envolvidas na instalação e manutenção de redes de radiofonia e internet que dão suporte aos garimpeiros.

  1. i) no caso da Anatel, aprimorar a regulamentação da oferta de serviços de instalação e manutenção de internet em Terras Indígenas e demais áreas protegidas, estabelecendo mecanismos para identificar e impedir impossibilitando sua operação clandestina de redes de comunicação para apoio à logística do garimpo ilegal e outras atividades ilícitas nestas áreas; ii) no caso da Anac, fiscalizar a operação irregular de aeronaves e pistas de pouso, impossibilitando sua operação clandestina para apoio à logística do garimpo ilegal; iii) no caso da ANP, aprimorar o principal instrumento de controle de venda do combustível de viação, o Mapa de Movimentação de Combustíveis de Aviação (MMCA).

– Aperfeiçoar as normas legais e infralegais que regulamentam a cadeia do ouro no nível nacional. A atual legislação não garante transparência suficiente para a cadeia e, de certa forma, dá margem para operações fraudulentas e práticas de lavagem de dinheiro entre outros crimes. Entre as sugestões de mudança estão:

  1. i) a implantação de um sistema de rastreabilidade de origem e conformidade ambiental e social da produção e do comércio de ouro; ii) a extinção do regime de Permissão de Lavra Garimpeira; e iii) a revogação da Lei 12.844/2013, que trata, dentre outras questões, do transporte e da comercialização de ouro dos garimpos, e que facilita a “lavagem de ouro”.

– Fomentar programas que ofereçam uma alternativa de renda para as comunidades indígenas vizinhas às áreas de garimpo, para neutralizar o assédio dos garimpeiros aos jovens Yanomami, por vezes seduzidos pelas promessas de bens e dinheiro que o trabalho no garimpo oferece.

– Retomar uma agenda positiva na região para garantir que as comunidades consigam se recuperar depois de anos de abusos, violência e destruição ambiental e sanitária.

Bolsonaro

A Polícia Federal vai abrir investigação para apurar se o ex-presidente Bolsonaro e outros integrantes do seu governo praticaram crime de genocídio contra os Yanomami. A bancada do PT na Câmara pediu à Procuradoria-Geral da República a abertura de inquérito pelo mesmo crime contra Bolsonaro e a ex-ministra da Família, das Mulheres e dos Direitos Humanos Damares Alves.

Após anunciar um conjunto de medidas e visitar Roraima no último sábado, o presidente Lula desabafou sobre a situação de fome que testemunhou. “Se alguém me contasse que aqui em Roraima tinha pessoas sendo tratadas da forma desumana, como eu vi o povo Yanomami sendo tratado aqui, eu não acreditaria. É desumano o que eu vi aqui”. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, já declarou que, além de ajudar a população local, o ministério trabalhará para “responsabilizar a gestão anterior por ter permitido que essa situação se agravasse ao ponto de chegar aqui”.

Veja a íntegra do relatório

Bolsonaro retomou genocídio indígena de onde ditadura militar havia parado

Jair Bolsonaro impôs aos indígenas um ultimato: ou se aculturavam e liberavam suas terras para a exploração econômica ou morriam de fome, de doença, à bala. Dessa forma, retomou o genocídio de onde a ditadura militar havia parado. A diferença é que, sob ele, tudo parece ter sido feito com muito orgulho e sem nenhum pudor.

A tentativa de genocídio na terra indígena Ianomâmi acabou rendendo imagens de crianças esquálidas que correram o mundo, para azar do “mito”. Apontado como responsável, o ex-presidente tentou tirar o seu da reta, dando a entender que o problema é fruto da migração de venezuelanos fugindo da crise em seu país. A conversa é para boi dormir, mas despertou o seu rebanho, que rumina teorias conspiratórias para justificar cadáveres.

Militantes da extrema direita reclamam de injustiça nas acusações a Bolsonaro. Afinal, quem poderia imaginar que ter o próprio presidente da República incentivando a ação de garimpeiros, madeireiros e traficantes levaria doenças e violência armada a territórios indígenas? E quem poderia prever que o um governo desestruturar o sistema de atendimento à saúde de povos tradicionais e enfraquecer programas de alimentação traria fome e morte, não é mesmo?

Como mostrou Carlos Madeiro, no UOL, bolsonaristas estão atacando o Exército por conta das operações em socorro aos ianomâmis ordenadas pelo governo Lula. Queriam que os militares dedicassem seu tempo a um golpe de Estado. Tem burrice, mas também cara de pau e fascismo.

O ex-presidente deixou claro seu incômodo com os direitos das populações indígenas aos seus territórios desde que era apenas um deputado federal especializado em rachadinhas. Quando chegou ao controle do Poder Executivo, deu início a uma ofensiva contra esses povos que repetiu as ações de consequências genocidas da ditadura militar ao negar-lhes terras, forçar sua aculturação, dificultar acesso a alimentos e permitir a exploração econômica de seus territórios por terceiros, mesmo à revelia.

Governo Bolsonaro disse que estava fazendo nova ‘Lei Áurea’ ao atacar indígenas

Após a Funai, então sob responsabilidade do Ministério da Justiça de Sergio Morocortar a ajuda a comunidades indígenas que vivem em áreas não-demarcadas, gerando fome no Mato Grosso do Sul, e de um ex-missionário evangélico ser indicado para cuidar da área que deveria proteger populações indígenas isoladas, Bolsonaro deu início ao seu plano de integração econômica forçada.

Em 5 de fevereiro de 2020, durante o evento que celebrou os 400 dias de seu governo, Jair bradou “o índio é um ser humano exatamente igual a nós”. E enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei para liberar a exploração mineral, a construção de hidrelétricas, a agropecuária e o turismo em territórios indígenas. Empolgado, o então ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, definiu o tal projeto como uma “Lei Áurea”. Consequentemente, comparou o lobby de empresas por esses recursos naturais ao movimento abolicionista.

Doze anos antes, em maio de 2008, em meio a um bate-boca em audiência pública na Câmara para discutir se a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, deveria ser contínua ou não, Jecinaldo Sateré Maué, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, bateu-boca com Bolsonaro e jogou um copo de água na sua direção. “Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”, afirmou o então deputado.

E, em 2004, durante outra reunião sobre a Raposa do Sol, Jair disse: “O índio, sem falar a nossa língua, fedorento, é o mínimo que posso falar, na maioria das vezes, vem para cá, sem qualquer noção de educação, fazer lobby”.

‘Escala de ódio e de barbárie de Bolsonaro’

“Esses crimes refletem a escalada de ódio e barbárie incitados pelo governo perverso de Jair Bolsonaro, que segue nos atacando diariamente, negando o nosso direito de existir e incitando a doença histórica do racismo do qual o povo brasileiro ainda padece”, disse uma nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante a cúpula das Nações Unidas sobre o clima, em Madri, já em dezembro de 2019. Vale destacar que ele chegou a culpar os indígenas pelas queimadas na Amazônia.

“Há gente passando fome aqui nas comunidades Guarani e Kaiowá. Continua criança indo para cama passando fome”, me disse Elizeu Pereira Lopes, representante da aldeia Kurusu Ambá no conselho Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, principal organização desse povo) naquela época.

Diante das reclamações por causa de invasões de garimpeiros a territórios indígenas ocorridas em seu governo, como aquelas contra a etnia Waiãpi, no Estado do Amapá, e os Ianomâmi, Bolsonaro disse que havia um complô internacional para a transformação dessas áreas em países independentes a fim de que suas riquezas pudessem ser exploradas.

“Esse território que está nas mãos dos índios, mais de 90% nem sabem o que que tem lá e mais cedo ou mais tarde vão se transformar em outros países. Há um interesse enorme de outros países de ganhar, de ter para si a soberania da Amazônia”, disse.

Os territórios indígenas – que são responsáveis por altas taxas de conservação ambiental – nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra pela independência do Brasil. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, querem se sentir efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra. Coisa que o país nunca garantiu totalmente a eles.

Exemplos de tentativas de genocídio envolvendo indígenas pipocaram na ditadura – e eram sufocadas pela censura.

Ditadura militar tentou genocídio de indígenas

Os Waimiri-Atroari vivem entre os Estados de Roraima e do Amazonas. Durante a ditadura, milhares deles foram executados em nome da implementação de grandes projetos na região.

Relatos colhidos de sobreviventes em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), por exemplo, contam que helicópteros sobrevoaram aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Depois disso, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas praticadas por homens brancos fardados contra adultos e crianças sobreviventes. Tratores passaram, na sequência, destruindo tudo.

O MPF cobra que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade, adote medidas de reparação e de indenização pelas violências cometidas contra a etnia entre os anos 70 e 80.

“Um dos depoimentos mais fortes apresentados à Justiça na audiência foi prestado por um que sobreviveu, quando adolescente, a um ataque aéreo e terrestre contra uma aldeia localizada nas proximidades do traçado da rodovia BR-174. Ele relatou que os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos ‘muito doentes’, em decorrência de veneno jogado do alto. Ele contou ainda que, depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e dos demais indígenas presentes, testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres”, afirmou o MPF.

Além dos ataques, as obras para a abertura da rodovia BR-174, ligando Manaus a Boa Vista e à Venezuela, levaram doenças para a população kinja (como eles se identificam). Muitos morreram sem apoio e a rodovia se tornou vetor de ocupação do Estado de Roraima e orgulho da ditadura. O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3 mil, nos anos 1970, para 332 indígenas nos 1980.

Bolsonaro cita sempre esse trecho da Amazônia como exemplo de preservação e de desenvolvimento sustentável. Não se sabe se é cinismo ou ignorância.

O ex-presidente ainda vetou um rosário de medidas de um projeto aprovado pelo Congresso Nacional voltado a proteger comunidades tradicionais, que apresentam extrema vulnerabilidade. Excluiu a obrigação de garantir água potável, fornecer materiais de higiene e limpeza, ofertar leitos hospitalares e em UTIs, distribuir cestas básicas, entre outras, durante a pandemia. Entregou esses povos à própria sorte.

Bolsonaro precisa ser investigado, processado e punido aqui no Brasil e em instâncias globais, como o Tribunal Penal Internacional – onde uma denúncia contra ele por esse motivo, levada em 2021, aguarda análise.

Bolsonaro continuou de onde a ditadura parou. Deve estar orgulhoso.

Chamar Bolsonaro de genocida é obrigação dos vivos com os mortos

Muita gente avisou que a necropolítica bolsonarista era genocida. Em resposta, foram alvo de ações judiciais, representações políticas, ironias de editorialistas, desdém acadêmico, críticas de juristas. Agora, observam o mundo lamentar as cenas de uma tentativa de genocídio contra o povo Yanomami, levada a cabo pelas ações e omissões de um presidente que sempre teve orgulho de sua obra.

O processo de aceitação de que tivemos alguém com ações genocidas no poder não ocorre de uma hora para outra. Tampouco já é unânime. Mas a ficha vai caindo aos poucos.

Felipe Neto recebeu uma intimação com base na Lei de Segurança Nacional por chamar Jair por essa alcunha durante a pandemia em 2021. O senador Randolfe Rodrigues foi alvo de representações pelo mesmo motivo. A jurista Eloísa Machado foi criticada por pares ao organizar a primeira denúncia contra Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional por genocídio indígena. Assistem, neste momento, o termo sair do armário.

A força das imagens de crianças indígenas gravemente desnutridas e de idosos mortos como consequência de um projeto de exploração econômica de seus territórios e de aculturação forçada dessas populações usando a fome, a doença e a bala vem ajudando a mudar a percepção do país sobre o seu ex-presidente.

Do mundo, não. Dado o distanciamento, o mundo já havia entendido que Jair é genocida.

Muita gente boa não aceita o termo. Não porque ele não se encaixa aqui ou ali nas definições de manuais (até porque o direito não detém o monopólio da língua), mas pelo fato de que acham inaceitável que um país como o Brasil seja genocida na terceira década do século 21. Acreditam que isso é coisa de Ruanda ou Mianmar.

A questão é que o repúdio da avaliação de Bolsonaro como um genocida ajudou a dificultar que os brasileiros denunciassem a necropolítica de seu presidente, garantindo, através da imposição do silêncio, que ele continuasse sendo tratado como se nada tivesse feito. E, dessa forma, decidindo a vida e morte de milhares de acordo com suas necessidades políticas.

Aguardar esse tipo de definição de instâncias formais de Justiça é jogar o jogo dos genocidas e dos torturadores, que se aproveitam de sistemas que, quando não são coniventes, são preparados para que esses crimes sejam praticados impunimente pelo absurdo que aparentam ser.

Pelo mesmo motivo, há quem defenda que não podíamos chamar o carniceiro, assassino e covarde Carlos Alberto Brilhante Ustra de torturador porque não havia uma condenação formal. É o que os fãs dos torturadores querem.

A sociedade e a imprensa não têm apenas o direito, mas o dever de chamar as coisas por seu nome em nome daqueles que morreram e não podem mais fazer isso.

Será que os que ficam horrorizados diante de um “Bolsonaro genocida” tiveram o mesmo comportamento quando o governo federal brigou no STF para não implementar medidas a fim de proteger a vida de povos indígenas durante a pandemia e quando agiu deliberadamente para garantir que garimpeiros e madeireiros levassem doença e morte aos territórios de populações tradicionais atendendo ao chamado de Jair?

Bolsonaro sabe que será protegido por parte do sistema, que evita responsabilizá-lo, concordando com o seu discurso de que nada poderia ter feito. Até um cone de trânsito, daqueles laranjas com listras brancas, se colocado na cadeira do principal gabinete do Palácio do Planalto teria causado menos mal. Pois é da natureza dos cones não fazer nada, enquanto Bolsonaro agiu deliberadamente contra a vida humana.

Como já disse aqui antes, que tenhamos coragem de permitir que as coisas sejam chamadas pelo que elas são para que possamos continuar dizendo que este país é uma democracia.

Bolsonaro em pose indigenista é como vampiro que se diz bebedor de groselha

A operação montada pelo governo para socorrer a comunidade indígena yanomami interrompe um ciclo de desprezo que produziu nos últimos quatro anos morte e devastação. Com sua visita a Roraima, Lula fez um risco no chão para demarcar a diferença entre a sua gestão e a desumanidade criminosa do antecessor. Em reação, Bolsonaro subiu no caixote do Telegram para fazer uma pose de defensor dos patrícios originários.

Acusado por Lula de favorecer a morte de indígenas com o seu descaso, Bolsonaro chamou de “mais uma farsa da esquerda” a classificação do drama vivido pelos ianomâmis como “crise humanitária”. Empilhou números e datas para sustentar que deu prioridade à saúde indígena. “Um marco está no enfrentamento da pandemia entre os povos tradicionais, anotou.

Bolsonaro esqueceu de lembrar —ou lembrou de esquecer— que o Supremo Tribunal Federal teve de intervir para que seu governo prestasse algum tipo de assistência sanitária às comunidades indígenas. Nessa matéria, Bolsonaro não é socorrido nem pelo seu passado.

O capitão engatinhava na Câmara quando o então presidente Fernando Collor assinou, em maio de 1992, o decreto que homologou a Reserva Ianomâmi. Subiu à tribuna em novembro de 1995 para ralhar:

“Com a indústria da demarcação das terras indígenas, assim como Quebec quase se separou do Canadá, num curto espaço de tempo, os Ianomâmis poderão, com o auxílio dos Estados Unidos, vir a se separar do Brasil.”

Decorridos quase 30 anos, as terras yanomamis continuam acopladas ao mapa do Brasil. Bolsonaro é que se descolou. Encontra-se refugiado em Orlando, a terra do Pateta. Hoje, as maiores ameaças à soberania da Amazônia são a desassistência governamental e o crime ambiental. Sob Bolsonaro, a organização do crime aumentou na proporção direta da esculhambação dos órgãos de controle.

Em março de 2022, o então ministro da Justiça Anderson Torres concedeu a Bolsonaro a Medalha do Mérito Indigenista. Um “reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”.

A condecoração foi um escárnio. Mas Bolsonaro, munido de autocritérios, considera-se merecedor da honraria. Finge não perceber que sua pose indigenista é algo tão convincente quanto a de um vampiro que tenta passar por um reles bebedor de groselha.

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