09/05/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Entenda o que ocorre se STF e Congresso tomarem decisões diferentes sobre o marco temporal

Julgamento foi retomado no Supremo enquanto projeto que limita demarcação de terras indígenas avança no Senado

Publicado em 30/08/2023 11:07 - Anna Beatriz Anjos (Agência Pública), Pedro Peduzzi (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação João Canizares/Agência Pública

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A decisão sobre a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas está simultaneamente nas mãos de dois poderes da República: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A Agência Pública entrevistou especialistas para entender o que ocorre caso a Corte e o parlamento encaminhem definições diferentes sobre o tema.

O movimento indígena e organizações indigenistas acreditam que o STF deve rejeitar o conceito jurídico, segundo o qual só devem ser reconhecidos pelo Estado territórios ocupados pelos indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.

A retomada do julgamento pelo tribunal começou nesta quarta-feira (30), após o ministro André Mendonça devolver o processo na noite da última quinta-feira (24) – ele havia pedido vistas no dia 7 de junho. Por enquanto, são públicos três votos: os do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, contrários à tese, e o de Kassio Nunes Marques, favorável. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.

Já no Congresso, a expectativa é de que o projeto de lei que trata do assunto (PL 2.903/23) seja aprovado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais, defende o marco temporal e articula para que o PL 2.903/23 seja votado antes da conclusão do julgamento no Supremo.

Na semana passada, a matéria passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal.

A etapa seguinte à CCJ é a votação do PL no plenário do Senado. Depois disso, se os senadores fizerem mudanças no texto, ele volta para a Câmara, que pode aceitá-las ou rejeitá-las, sem propor novos trechos ao projeto.

Concluída essa fase, a matéria será encaminhada para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar dispositivos do texto. Se houver vetos, eles serão examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Só ao fim desse processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.

O jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em direito constitucional, explica que, caso o marco temporal vire lei pelas mãos do Congresso antes da conclusão do julgamento no STF, a Corte pode seguir por dois caminhos.

“Pode dizer: não é mais comigo, porque já existe uma lei sobre isso”, afirma, destacando que essa decisão ficará a cargo do relator do processo, o ministro Edson Fachin. “Ou pode dizer: há uma lei fixando o marco temporal [para demarcação de terras indígenas] a partir de 5 de outubro de 1988, que era o que eu já estava discutindo, então vou apreciar a constitucionalidade daquilo que o Congresso definiu”.

De acordo com Lima, nesta última hipótese, o STF poderia aproveitar o julgamento atual para analisar a constitucionalidade da lei.

A advogada Ana Carolina Alfinito, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e assessora jurídica da ONG Amazon Watch, reconhece a possibilidade de o STF decidir não mais se posicionar sobre o marco temporal caso seja instituída uma lei que determina a sua aplicação como critério para a demarcação de terras indígenas. No entanto, ela a considera pouco provável.

“O relator está muito interessado que esse julgamento aconteça. A presidente [da Corte] Rosa Weber também quer pautar [a questão]. Isso se tornou, inclusive, um tema de debate dentro do STF”, pontua.

Alfinito avalia ainda que, com o voto de Alexandre de Moraes, proferido em 7 de junho, o STF tem a oportunidade de “fazer uma conciliação” em torno do marco temporal. O ministro rejeitou a tese, mas colocou duas novas propostas sobre a mesa: o pagamento de “indenização prévia” a proprietários de imóveis sobrepostos a terras indígenas; e a compensação por “territórios de interesse público”. Esta última situação prevê a possibilidade do Estado oferecer aos indígenas áreas alternativas àquelas que reivindicam.

Para a advogada, a indenização seria uma forma de apaziguar os dois lados. “O tribunal está numa posição confortável: é capaz de superar a tese inconstitucional do marco temporal e, ao mesmo tempo, agradar as forças políticas que o defendem”, argumenta.

Na visão de lideranças indígenas e especialistas, porém, o PL 2.903/23 traz uma série de outros ataques aos direitos indígenas que vão além do marco temporal.

Entre outros pontos, o texto atual proíbe a ampliação de territórios já demarcados e permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam realizadas sem consulta aos povos afetados (leia aqui reportagem da Pública sobre 10 itens polêmicos do PL).

Um parecer da consultoria jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) publicado neste mês concluiu que “diversos dispositivos” do projeto de lei são inconstitucionais.

Por causa desses vários pontos polêmicos, os especialistas ouvidos pela reportagem compreendem que, se a matéria for convertida em lei, será necessário o questionamento de sua constitucionalidade no STF.

Caso o Supremo conclua seu julgamento antes de  o PL 2.903/23 ser votado pelo Congresso, a expectativa dos especialistas é que isso acabe interferindo na tramitação legislativa. “Se o STF decidir logo, certamente influenciará no texto em curso no Legislativo. Seria muito estranho o Legislativo afrontar o STF com um texto que colide com a decisão da Corte”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, considera que a decisão trará repercussões à tramitação do projeto.

Lula Marques – Abr

No Senado, indígenas defendem que marco temporal é inconstitucional

Lideranças indígenas ouvidas no último dia 23 no Senado disseram que uma eventual aprovação, pelo Legislativo, do marco temporal para demarcação de terras indígenas seria, além de inconstitucional, um rompimento do país com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o país é signatário.

A Convenção 169 trata da definição sobre quem são os povos indígenas e tradicionais, e ainda elenca uma série de obrigações dos governos, no que se refere a reconhecimento e proteção de valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais desses povos.

“Esta audiência não deve ser vista como a consulta prevista na Convenção 169 da OIT, que prevê consulta prévia aos povos indígenas para a definição de quem são os povos indígenas e tribais”, disse o Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna, logo na abertura da audiência da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado.

Karipuna disse que há muito desconhecimento, por parte dos não indígenas, sobre o modo de vida e, também, de produção dos povos indígenas. “Ao contrário do que se diz, os povos indígenas produzem, sim, em seus territórios”, disse ele, ao usar como exemplo a produção de açaí, por algumas etnias.

Presidente da Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti, Nambikwara e Manoki, Arnaldo Zunizakae defende que as políticas voltadas aos povos indígenas precisam ir muito além da questão da demarcação e abranger também proteção e gestão territorial, inclusive em termos de financiamento especial a produção em territórios indígenas

“Dizem que o marco temporal vai ajudar os indígenas a produzirem, mas não há nada no texto que preveja financiamento especial para nossos povos produzirem. Não temos condições de buscar acesso a crédito. Falta garantia real para nos darem acesso a crédito”, disse Arnaldo Zunizakae.

“Por isso precisamos ir além da questão de demarcação e discutir também políticas para vivermos com dignidade. Vamos lutar como indígenas para garantir as demarcações que faltam. O marco temporal é preocupante porque não considera os indígenas que tinham sido expulsos por grileiros. Precisa de estudo sério para saber se a terra é sagrada e para saber se havia indígenas lá”, acrescentou.

Segundo a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, o projeto de lei que trata do marco temporal (PL 490/2007, que após aprovação pela Câmara passou a tramitar como PL 2.903/2023 no Senado) é inconstitucional.

“Existe nele um vício legislativo, que é você colocar uma interpretação; uma inovação; uma emenda. Digo emenda porque a proposta do texto faz alterações nos dispositivos constitucionais. Essas alterações não poderiam ser aprovadas por meio de lei ordinária”, disse a presidenta da Funai.

Ela explica que além de afetar os direitos fundamentais dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de suas terras, o texto, se aprovado, dá “uma nova roupagem em relação às indenizações de boa-fé e impõe um marco temporal a partir do dia 5 de outubro de 1988. Ou seja, ele altera a nossa Constituição no artigo 231”, argumentou

“Isso é um vício legislativo que não deveria ser tratado numa lei ordinária que requer um quórum mais simples. Deveria requerer uma PEC [Projeto de Emenda Constitucional], que tem uma garantia a mais, por ter de ser discutida em dois turnos e em quórum mais apropriado e absoluto”, complementou a presidenta da Funai.

Outro ponto citado por Joenia Wapichana é o de que o marco temporal fere a vedação do princípio ao retrocesso. “Um princípio que hoje nós discutimos é a vedação do princípio ao retrocesso social. Ou seja, a possibilidade de marcar ou de alterar procedimento de demarcação em terras indígenas que esteja em curso”.

Para Wapichana, a tese do marco temporal fere o princípio dos direitos originários; modifica o conceito de terra e o princípio da imprescritibilidade e da indisponibilidade, a partir do momento que flexibiliza o usufruto exclusivo, fazendo com que o direito de consulta prévia informado seja inferiorizado em termos de novos empreendimentos e entradas de invasões ou sem qualquer direito à consulta.

Ela destacou, também, a possibilidade prevista de expropriação de terras indígenas por alteração de traços culturais. “Isso tudo está no texto do PL 2.903, que de uma forma bastante agressiva, quando se fala de terras reservadas, coloca em questão a própria identidade dos povos indígenas – que é garantida pela Constituição”.

Para Osmar Serraglio, então ministro da Justiça na gestão de Michel Temer, o marco temporal garante uma interpretação estável da legislação. Segundo ele, a tese foi reforçada com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009. “O STF é quem interpreta a Constituição. Ele tinha um episódio em que precisava definir a concepção da Constituição, e construíram uma lista de condicionantes. Os tribunais têm que ter jurisprudência estável. Não é dizer uma hora uma coisa, depois outra”, disse Serraglio, segundo informações da Agência Senado.

Na avaliação do secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, o marco temporal pode provocar mais insegurança jurídica e mais conflitos por terra no país. “Da forma como caminhamos, estamos nos afastando da construção de consensos, jogando fora uma sinalização do Executivo para o diálogo e aprovando algo que vai dar origem a uma enorme batalha jurídica. Vamos conviver com a insegurança de que gostaríamos de nos livrar”, afirmou.

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Equipe Semana On

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