Campo Grande
Manancial é responsável por 40% do abastecimento de água de Campo Grande
Publicado em 16/11/2023 11:15 - Anderson Viegas – G1MS
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De um quadro de risco ambiental a um exemplo de preservação e sustentabilidade para todo o Brasil. Em pouco menos de três décadas a situação da bacia do córrego Guariroba, que responde por 40% do abastecimento de água dos 897,9 mil moradores de Campo Grande (MS), mudou completamente.
Graças ao envolvimento e mobilização dos produtores rurais da bacia, participação do Poder Público, da iniciativa privada e de entidades do terceiro setor, além de acompanhamento do Ministério Público Estadual (MP-MS), foram investidos recursos e implementadas diversas ações e projetos que asseguraram a preservação e recuperação do meio ambiente.
O trabalho desenvolvido na região demonstrou que é possível conciliar a produção agropecuária com a conservação da natureza e, de quebra, ainda resultou em um aumento do volume e da qualidade de água captada do córrego para abastecer a população da cidade.
A água do córrego Guariroba é utilizada para abastecer Campo Grande desde 1985, quando a Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (Sanesul), que detinha a concessão do serviço na época, concluiu as obras de captação. A capital sul-mato-grossense tinha então menos da metade da população atual, cerca de 415,6 mil habitantes, e 74,14% eram atendidos com água encanada. Hoje o serviço está universalizado.
No início da operação, o sistema de captação e adução funcionava somente cinco horas por dia, já que não havia consumo para toda a água produzida. Atualmente opera entre 18 e 20 horas. A água capitada viaja por uma adutora, uma tubulação com quase um metro de diâmetro, por cerca de 30 quilômetros até chegar à Estação de Tratamento Guariroba (ETA Guariroba).
No local, passa por oito etapas de tratamento (pré-alcalinização, coagulação, floculação, decantação e flotação, filtração, desinfecção, fluoretação e ajuste final de PH), antes de ser distribuída para a população.
Manancial em risco
No período de uma década, entre 1984 – um ano antes da entrada em operação do sistema de capitação e tratamento Guariroba – e 1994, ocorreu uma redução de 82,36% na cobertura de vegetação natural da bacia. As áreas nativas cobertas com Cerrado recuaram de 18.973 hectares para 3.347, segundo estudo realizado pelos geógrafos Mauro Henrique Soares da Silva e Rennam Vilhena Pirajá e, os biólogos Valtecir Fernandes e Ademir Kleber Morbeck Oliveira, por meio do processamento digital e análise de imagens de satélite.
Veja mapas comparativos abaixo
Para conferir a íntegra do estudo “Avaliação multitemporal das paisagens da área de Proteção Ambiental (APA) dos Mananciais do Córrego Guariroba, Campo Grande, Mato Grosso do Sul”, por meio de imagens de satélites, clique aqui.
No mesmo intervalo de tempo, o trabalho mostrou que a área total da bacia com solo exposto, ou seja, com ausência de biomassa vegetal, cresceu 841,7%, saltando de 1.793 hectares para 16.885 hectares.
O trabalho atribuiu essa degradação ao avanço sem controle da pecuária, que era e, continua sendo, a principal atividade econômica na área da bacia. Apontou também que isso ocorreu com a substituição de vegetação nativa por pastagens e com o livre acesso do gado as nascentes para a dessedentação. Isso causava desde a contaminação da água até processos erosivos, por conta do pisoteamento dos animais em áreas sem cobertura vegetal que estavam próximas aos cursos de água.
O estudo, publicado pelos quatro pesquisadores em 2017, apontou que entre 1984 e 1994 a progressiva substituição da vegetação natural por pastagens, com o manejo inadequado do gado, gerou grandes impactos na bacia, resultando em processos erosivos, assoreamento dos rios e córregos e do reservatório do sistema Guariroba.
O quadro, conforme os estudiosos, colocava em risco a manutenção do ecossistema da bacia e, por consequência, impactava na quantidade e na qualidade da água captada na região para abastecer a população de Campo Grande.
Criação da APA
Para tentar frear o processo de degradação, foi criada em 21 de setembro de 1995, pela prefeitura da capital sul-mato-grossense, a Área de Proteção Ambiental (APA) dos Mananciais do Córrego Guariroba (decreto municipal 7.183). Para ver o decreto clique aqui. Para ver o decreto clique aqui.
A área delimitada para a APA foi de 36,2 mil hectares. Com característica fundiária predominante de médias e grandes propriedades, com tamanhos de 48 a 5.480 hectares, possui um reservatório de água com volume de aproximadamente 4,2 milhões de metros cúbicos, em 53 hectares. Na região já foram identificadas 42 nascentes.
O decreto, em seu primeiro artigo, apontava que o objetivo era recuperar e conservar os mananciais de abastecimento público da bacia do Guariroba, para assegurar a sustentabilidade em quantidade e qualidade dos recursos hídricos. Também determinava a proteção do ecossistema, das várzeas e dos fundos de vale.
Com a instituição do território protegido, as propriedades da bacia foram transformadas em áreas particulares de utilidade pública, passando a atender uma legislação ambiental e normas específicas que disciplinavam o uso dos recursos naturais da região.
Entre uma série de proibições na área, o decreto vetou atividades industriais, implantação de loteamentos urbanos, a abertura de canais e a remoção da vegetação nativa em uma faixa de 50 metros ao lado de cada margem do leito dos rios e córregos da bacia e de 200 metros ao longo do reservatório do Guariroba.
No processo de implantação da APA, foram realizados ainda estudos sobre a bacia, criado um conselho gestor e elaborado um plano de manejo.
Um ano depois, em 1996, os produtores rurais da região fundaram a Associação de Recuperação, Conservação e Preservação da Bacia do Guariroba (ARCP). O atual presidente, Claudinei Menezes Pecois, aponta que a entidade nasceu para que eles tivessem uma maior representatividade na discussão de assuntos relacionados a APA, como, por exemplo, o cumprimento das exigências ambientais, com a nova condição da área, e o encaminhamento das demandas ao Poder Público e instituições parceiras.
Primeiras ações
A produtora rural e vice-presidente da ARCP, Maria Cristina Possari Lemos, lembra que logo depois da criação da área de proteção, o Ministério Público Estadual (MP-MS) entrou em contato com os produtores e concedeu um prazo para a adequação das atividades ao plano de manejo da região. Os projetos de regeneração das áreas degradas começaram a ser implementados pouco depois.
Em 2010, para acelerar a restauração ambiental, que ocorria então de forma lenta na APA, o município, em parceria com os produtores, a Agência Nacional de Águas (ANA), o Sindicato Rural de Campo Grande, o MP-MS e a concessionária Águas Guariroba, criou o Programa Manancial Vivo (PMV).
O programa, segundo a secretaria municipal de Meio Ambiente e Gestão Urbana de Campo Grande (Semadur), foi elaborado tomando por base experiências de sucesso desenvolvidas em Nova York, nos Estados Unidos e em Extrema, Minas Gerais, que ofereciam uma remuneração aos produtores pela conservação ambiental das áreas de nascentes dos mananciais que abasteciam essas cidades.
‘O Manancial Vivo nasceu com o objetivo de promover práticas e ações para recuperar e conservar a bacia hidrográfica da capital sul-mato-grossense, priorizando os mananciais destinados ao abastecimento público de água, o Guariroba e o Lageado. Como principal ferramenta, instituiu o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) aos produtores inscritos na iniciativa.
Por meio de editais, o PMV selecionou produtores da APA para participar. Entre 2010 e 2018, a Semadur publicou cinco chamadas públicas, cobrindo as cinco sub-bacias da região (Guariroba, Saltinho, Tocos, Rondinha e Reservatório). Dos 78 produtores rurais da área de proteção, houve a adesão de 39.
De acordo com a secretaria, nos dois primeiros editais foram assinados contratos com 15 produtores. Além do PSA, eles também receberam apoio de 40% do valor gasto para a realização de ações voltadas para a conservação de água e do solo e para a preservação de áreas de proteção ambiental (APPs).
A Semadur destaca que nos dois primeiros editais do PMV, o município destinou R$ 2,557 milhões aos produtores em PSA. Já nos outros três, que têm ainda 24 produtores com contratos em vigência, o valor chegou a R$ 1,479 milhão.
Veja abaixo as ações desenvolvidas por meio do programa
Restauração
Sempre em parceria com os produtores, o WWF-Brasil atua na região da bacia do Guariroba há mais de 10 anos. Neste período foram desenvolvidas várias ações que englobaram desde a conservação do solo, eventos, cursos e oficinas, dias de campo, apoio ao PSA, restauração de vegetação nativa e reabilitação de pastagens.
Esse trabalho embasou estudos e elaboração de uma modelagem que indicou que a melhoria da qualidade da água só começa a ser percebida quando ao menos 2,5% da paisagem local é alvo de ações sustentáveis, como restauração nas margens de rios e nascentes, conservação do solo e adoção de melhores práticas agrícolas. Já o aumento do volume hídrico só foi constatado após intervenção em, no mínimo, 20% da área.
Especificamente sobre a região do Guariroba, as pesquisas da ONG apontaram que a recuperação das áreas desmatadas na região da bacia não seria tão simples, pois pelo menos 42% da paisagem tinha baixo potencial de regeneração natural, o que tornava essencial o uso de técnicas ativas de restauração e uma ampla mobilização, que envolveria desde os produtores até o Poder Público.
Em razão desse contexto, a especialista em Conservação e Restauração do WWF-Brasil, Veronica Mailoli, disse que nos processos de restauração das APPs da APA Guariroba estão sendo utilizadas duas técnicas, com o uso de mudas e sementes.
Ela explica que a restauração de APPs na APA está sendo realizada com base em análises e modelagens espaciais, que indicam quais áreas são prioritárias para ser restauradas, pensando na maior retenção de água no solo, o que garante a melhoria na qualidade e quantidade de água nos rios e córregos da região.
“A ARCP há anos atua na restauração da região e o WWF-Brasil tem apoiado este trabalho. Em 2022 restauramos diretamente 15 hectares de matas ciliares do Guariroba, e testamos a implementação de 2 hectares com semeadura direta ou muvuca, que é uma técnica onde se usa uma grande diversidade de sementes nativas misturadas, e que tem tido sucesso em outras regiões do Cerrado”, comenta.
No trabalho de reflorestamento de matas ciliares na bacia do Guariroba, Veronica comenta que tem sido utilizadas entre 30 e 40 espécies nativas de mudas e 10 de sementes. “Temos: Tamboril (Enterolobium contortisiliquum), Tingui (Magonia pubenscens), Ipês (Tabebuia spps), Jacarandá-caroba (Jacaranda cuspidifolia) etc. E de sementes: Timbó (Ateleia glazioviana), Guariroba (Syagrus oleracea), Baru (Dipteryx alata) e Jatobá (Hymenaea courbaril), entre outras”.
O presidente da ARCP, aponta que a bacia tem atualmente cerca de 650 hectares de APPs que precisam ser restaurantes. “Hoje, em média, estamos conseguindo fazer de 15 a 20 hectares por ano. A restauração é um trabalho árduo. O clima da região é complicado. Tem período em que a estiagem é severa e tem época que chove em excesso. Isso dificulta a restauração. Por isso, precisamos de recursos e de parcerias. O Cerrado é resiliente e contamos com a autorregeneração. Em alguns lugares ela vai acontecer, mais em outros não, se não houver a ação humana. Se não tiver um trabalho bem-feito, a vegetação não vai se regenerar sozinha. Algumas áreas já estão empobrecidas, são de terras muito fracas. Então precisa da ação humana e nós precismos de ajuda nesse trabalho, porque nesse ritmo, calculamos que vai levar uns 40 anos para restaurar tudo”.
Claudinei reitera que recuperar as nascentes é essencial para evitar o assoreamento dos rios e para que se possa produzir mais água e com maior qualidade. “Sem esse trabalho de harmonização da natureza, a água não vai brotar, porque existe todo um ciclo para que a água exista, e isso passa pelas plantas, pelo cuidado com a natureza. Está tudo interligado”, alerta.
Por sua vez, Verônica diz que além do plantio de mudas e sementes é preciso fazer uma ação complementar, a de conservação do solo das áreas de produção, com a implantação de curvas de nível e a reabilitação de pastagem. Isso auxilia no aumento da produtividade e diminui a lixiviação (carreamento de solo para os rios), reduzindo a erosão.
“Mais hectares podem ser implementados na paisagem, mas, para isso acontecer, é preciso que a cadeia da restauração esteja estruturada e haja mão de obra capacitada, insumos de qualidade, proprietários de terra engajados e recursos financeiros disponíveis”, indica.
Outros projetos
A especialista em Conservação e Restauração do WWF-Brasil, diz que a recuperação da APA do Guariroba é um exemplo para o país de que a produção agropecuária pode ser sustentável e aliada da preservação ambiental.
“A bacia fornece parte da água que abastece Campo Grande e, por isso, o trabalho de conservação e restauração ambiental na região é prioritário. Ao mesmo tempo, os proprietários do Guariroba têm um histórico de atuação com pastagens e gado, e isso não mudou com o plano de manejo da APA. A produção contínua e a conservação também. Nosso trabalho é no sentido de apoiar os produtores a produzir mais, de forma sustentável, respeitando o meio ambiente. Por conta de o plano de manejo ser restritivo, a soja não entrou na APA, mas está em suas bordas, o que pode gerar impactos negativos a produção de água, caso a legislação e o manejo sustentável não seja adequado”.
O presidente do Sindicato Rural de Campo Grande (SRCG), Alessandro Coelho, reitera a análise feita por Verônica, sobre o trabalho do produtor da APA do Guariroba para produzir com sustentabilidade e defende a replicação desse trabalho em outros locais do país.
“Desde a criação da ARCP que aconteceu na sede do sindicato, buscamos dar destaques a iniciativas sustentáveis de fato, com resultados metrificados e comprovados. A gente busca estar presente ao máximo em iniciativas como estas, a fim de contribuir diretamente para o desenvolvimento de ideias lúcidas, capazes de manter a produção agropecuária de forma sustentável, com preocupações econômicas, sociais e ambientais. O que o grupo da ARCP faz, manter a produção agro competitiva, produzir água, preservar e ser beneficiado com recursos, é tão significativo, que deveria ser replicado em outros municípios de forma imediata, trazendo maior dignidade às pequenas e médias propriedades, que valorizam o meio ambiente e precisam ser reconhecidos por isso, a partir do benefício que é integral da sociedade”, analisou.
Para inspirar outros municípios do país que têm quadro semelhante ao de Campo Grande, o WWF-Brasil fez em 2023 um levantamento de todas as ações e projetos desenvolvidos na APA do Guariroba e que ajudaram a reverter o quadro de degradação ambiental de solo e de água da bacia. Foram identificadas sete “programas e projetos guarda-chuvas”. Essas iniciativas foram analisadas e as “Lições Aprendidas” – como foi batizado o documento que as reúne, poderão ser replicadas pela entidade e parceiros em outros locais do país.
Veja abaixo as macro ações
Mais água e melhor
Com a implementação de várias ações e projetos para a conservação e recuperação do solo e da água na APA, houve a necessidade de mensurar se essas iniciativas estavam de fato refletindo em uma melhoria das condições ambientais na região e, por consequência, do manancial superficial que abastece parte significativa da cidade.
Em 2011 uma parceria foi estabelecida entre a Semadur e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) para fazer esse trabalho.
Uma equipe formada por professores dos cursos de Engenharia e Geografia da instituição, além de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado passaram a monitorar a APA. Inicialmente em três locais e depois nos sete pontos definidos do plano de manejo da área.
“Acompanhávamos diretamente a questão da água. Verificávamos o nível dos rios, fazíamos a medição da vazão e a medição do transporte de sedimentos para o leito dos rios. Para medir a erosão usávamos modelos, cruzando dados de satélite com informações que o município nos fornecia”, comenta o professor doutor Jullian Sone, um dos coordenadores do estudo.
Ele explica que o objetivo do trabalho era verificar a efetividade do Programa Manancial Vivo. “O programa fornece incentivos financeiros aos produtores, o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Queríamos verificar se as práticas conservacionistas apontadas na iniciativa estavam sendo implementadas e se estavam fazendo efeito ou não na APA. Era essa a pergunta principal e que motivou a instalação dos equipamentos de monitoramento”.
Jullian disse que como não havia base de dados anterior, o ano de 2012 – quando o monitoramento foi iniciado, representou o marco zero do trabalho. “Observamos logo no começo do estado que muitos sedimentos eram carreados para o leito dos rios e córregos. Identificamos também alguns pontos de erosão e até voçorocas [grandes buracos abertos pela erosão]”.
Em 2018 o grupo de pesquisadores publicou um artigo científico com os resultados preliminares do trabalho e os resultados foram muito positivos. “O quadro da bacia já era bem diferente [do observado inicialmente]. Utilizamos dados de 2012 a 2014, quando 45% das práticas já tinham sido implementadas, principalmente nas cabeceiras, as nascentes dos rios e córregos. Observamos que mesmo com decréscimo de chuva, houve um favorecimento da infiltração de água no solo e um aumento de 40% na vazão de água do córrego Guariroba”.
O artigo intitulado: “Melhoria do abastecimento de água através do pagamento por serviços ecossistêmicos”, apontou ainda outros dados animadores. Uma redução de 25% na perda do solo no período devido principalmente a utilização de terraços (curvas de nível) nas áreas de pastagem.
Além disso, o estudo revelou que os esforços para conservar e restaurar a mata nativa e a vegetação ciliar foram fundamentais para aumentar a vazão dos rios e córregos da bacia. O trabalho mostrou que uma área de vegetação nativa perene está fortemente correlacionada a diminuição do escoamento superficial e contribui para a infiltração de água no solo.
A pesquisa demonstrou ainda que a concessionária que capta e trata essa água é uma das grandes beneficiadas com o programa, já que a adoção de práticas conservacionistas não apenas restaura os ecossistemas degradados, mas também os torna mais resilientes as variáveis climáticas, assegurando quantidade e qualidade na água do manancial.
Em 2019, o projeto foi concluído, mas seus dados embasaram um segundo artigo científico do grupo: “Uma melhor compreensão dos impactos das alterações climáticas na segurança hídrica, para além da variabilidade climática”. Esse trabalho analisou a segurança hídrica em um cenário de alteração climática e de aumento de demanda na bacia do Guariroba e também na do Jaguari (que abastece a região metropolitana de São Paulo).
O professor Jullian ressaltou que esses resultados demonstram que monitoramento precisa ser contínuo, porque são esses dados que fornecem as informações necessárias para a tomada de decisão, ainda mais em quadro em que a APA, assim como todo o planeta, já sente os impactos das mudanças climáticas. “Não tem como formular planos de gestão, como definir os caminhos que devem ser seguidos na gestão dos recursos hídricos e ainda verificar a efetividade dos programas implantados sem o monitoramento”, defende.
Em 2019, a Águas Guariroba criou uma ferramenta para monitorar os mananciais superficiais utilizados no abastecimento de Campo Grande, os córregos Guariroba e Lageado. O Programa Bacia Monitorada (PBM) nasceu para mensurar a efetividade das ações de conservação ambiental nas bacias para garantir a quantidade e qualidade da água.
Com o PBM, vários aspectos passaram a ser medidos: quantidade de sedimentos nos corpos hídricos, qualidade da água, nível de assoreamento do reservatório, indicadores microbiológicos de qualidade da água, avaliação da quantidade de água superficial e subterrânea, balanço hídrico e monitoramento meteorológico.
A coleta de amostras do programa também é feita em sete locais distribuídos nas principais sub bacias que compõem a APA. Elas são analisadas com base em parâmetros do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determinados no Plano de Manejo da área.
Esses parâmetros são divididos em: Físico-Químicos (Alcalinidade total, Óleos e graxas, DBO, Temperatura, Turbidez, Cor, PH, Cloreto, Fósforo total, Ortofosfato, Nitrogênio Total, Nitrato, Nitrito, Sólidos totais e Sólidos em suspensão totais), Bacteriológicos (Coliformes Termotolerantes, Cryptosporidium sp e Giárdia sp) e Controle Especial (Metais Pesados e Biocidas Organoclorados e Organofosforados).
Com base nesses parâmetros é calculado o Índice de Qualidade da Água (IQA). Amostras coletadas em março de 2017 apontaram que a qualidade da água nos sete pontos selecionados da bacia era boa, sendo que os melhores índices do indicador (78), foram obtidos nos córregos “Do Açude” e “Rondinha”.
Em 2022, com a consolidação dos programas de restauração e conservação na APA do Guariroba, houve não só o aumento da vazão na região, como apontou o estudo da UFMS, mas também a melhoria da qualidade da água dos rios e córregos da bacia, de acordo com o PBM. No último trimestre do ano passado, nos mesmos sete pontos de coleta de amostras de água, em quatro, o material foi considerado de boa qualidade e, em três, de ótima.
Apresentaram os melhores indicadores de IQA dois pontos do córrego Guariroba, com 79,83 e 79,86 e um do córrego Saltinho, com 80,15%.
“A qualidade da água na bacia do Guariroba sempre foi considerada boa. No entanto, a principal questão que o Programa Manancial Vivo atacou foi a proteção do solo para evitar que sedimentos chegassem ao corpo hídrico, ou seja, isto acaba evitando o assoreamento e a diminuição da quantidade de água. Em termos de qualidade, nunca tivemos problema. Houve melhora significativa do Índice de Qualidade da Água, havendo inclusive, alguns pontos com qualidade de água ótima, o que é uma nota difícil de se obter até para ambientes naturais intocados”, analisa o gerente de Meio Ambiente e Qualidade da Águas Guariroba, Fernando Garayo.
Garayo ressaltou que a qualidade da água bruta que chega do Guariroba até a estação de tratamento tem em muitos parâmetros indicadores bem próximos do que preconiza a legislação e a portaria de Potabilidade do Ministério da Saúde para a distribuição a população. “Dos sete pontos de coleta de água, registramos em seis curvas de melhora da qualidade. Essa água de boa qualidade acaba facilitando os processos de tratamento”, aponta ele.
Devido ao caráter único do programa a nível nacional, o PBM ganhou reconhecimento nacional. Venceu o Prêmio Sustentabilidade da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto na categoria Gestão e foi finalista do Prêmio Nacional da Qualidade em Saneamento da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental na categoria “Inovação da Gestão em Saneamento Ambiental”.
Além da melhoria da qualidade da água em si, o gerente de Meio Ambiente apontou que o levantamento também revelou uma redução significativa de sedimentos chegando ao reservatório e creditou esse resultado as ações implementadas pelos produtores e parceiros na conservação e revitalização de solos, proteção de APPs e de reservas legais.
“Esse trabalho de monitoramento feito pela concessionária contribui para avalizar os resultados do trabalho desenvolvido na APA, que é muito bom e resulta em uma água de excelente qualidade e que é muito difícil encontrar em um manancial de abastecimento público”, ressalta.
Outra iniciativa desenvolvida pela concessionária voltada para a APA, conforme Garayo é a doação de mudas de seu viveiro, que tem capacidade para produzir 50 mil unidades por ano, para projetos de restauração ambiental e reflorestamento. “Nos últimos anos houve um aumento grande da demanda por mudas para esses projetos, e com a doação incentivamos essas iniciativas, porque diminui muito o custo das restaurações”.
Entre as mudas mais demandas para esses projetos, ele cita o de árvores como o angico, o jacarandá e das várias espécies de ipês. “Estamos agora em processo para ampliar a capacidade do nosso viveiro em mais 30 mil mudas. Alteramos o método de produção para facilitar a logística dos produtores para transportar e plantar essas mudas”.
O gerente de Meio Ambiente e Qualidade da Águas Guariroba comentou que a holding da empresa, a Aegea, fez uma parceria com o WWF-Brasil, para realizar um diagnóstico ambiental das Cabeceiras do Pantanal, o que inclui a APA Guariroba, no projeto Água para Todos.
“Nesse diagnóstico mapeamos a situação de todos os rios e bacias que contribuem para a recarga de água no Pantanal. Com esse levantamento, temos informações de onde precisa ser restaurado. Com base nessas informações temos subsídios técnicos para que qualquer empresa e instituição saiba onde restaurar e quais são as áreas prioritárias para esse trabalho. Agora queremos estimular entidades, instituições e o poder público a ajudar os produtores a promover essa recuperação ambiental”.
Produção com sustentabilidade
Em meio a implementação de projetos e ações na APA, os produtores rurais da região encontraram o caminho para conciliar a atividade agropecuária com a sustentabilidade.
A vice-presidente da ARCP, Maria Cistina Possari Lemos, cita o exemplo que desenvolveu em “casa”, a fazenda Crescente, de 700 hectares. No local, assim como outras propriedades da região, ela trabalha com a pecuária de corte.
“O rio Buriti atravessa a fazenda. Temos 18 hectares de APPs e desse total já fizemos a restauração ecológica de 12, utilizando a muvuca e agora a semeadura, sempre com árvores nativas. As primeiras mudas plantadas já estão totalmente adaptadas e se transformaram em árvores, com mais de 2 metros. Além disso, já fizemos o cercamento de todos os mananciais para que o gado não faça a dessedentação. Para fornecer água aos animais implantamos uma rede dentro da fazenda. Temos uma caixa de água central e mais dois pontos de abastecimento, tudo movido por uma roda de água, com a força do próprio rio. Com isso, estamos preservando e, ao mesmo tempo utilizando, de modo sustentável, a água em nossos 18 pastos”, explica.
Com a recuperação das APPs e a implantação de técnicas de conservação de solos, como os terraços ou curvas de nível, ela aponta que os benefícios para a fazenda já são vistos a “olho nu”. “Já percebemos um aumento da quantidade de água no Buriti e mesmo no período de estiagem nunca faltou água aqui. A qualidade da água do rio é tão boa, que é ela que utilizamos para tudo na sede da fazenda”, relatou.
O médico-veterinário da ARCP, Walter Thaler, destacou que na APA, produtores e entidades têm trabalhado conjuntamente a recuperação do meio ambiente e também das áreas de pastagens. Essa ação é desenvolvida por meio de um dos macro-projetos realizados na área em parceria com o WWF-Brasil.
“Se não for assim, não adianta nada preservarmos uma área próxima aos mananciais, ao leito dos rios, se a pastagem está degradada em uma área pouco acima. Isso vai provocar erosão e carrear detritos e areia, assoreando os córregos e rios. Por isso, fazemos uma ação conjunta”, explicou.
Walter explicou que a recuperação de pastagens na área é feita por meio da reforma dos pastos, implantação de novas culturas e técnicas de recuperação de solo. Ele citou como um exemplo o trabalho desenvolvido na fazenda Crescente, entre 2022 e esse ano. “Fizemos a reforma de 55 hectares de pastagens. Além da recuperação, aplicamos também técnicas de conservação do solo, entre elas, a implantação de 11 quilômetros de curvas de nível”.
O uso de curvas de nível ou terraços é uma ferramenta fundamental na estratégia de conservação de solo na região. Ele explica que essa prática auxilia na contenção da água, principalmente nos locais que têm declividade. “Com as curvas impedimos que a água escoe, formando erosões nas áreas restauradas. Dessa forma, impedimos que essa água carregue areia e detritos, afetando a fertilidade do solo”.
Além da fazenda Crescente, o trabalho foi desenvolvido também nas propriedades Isadora, Velho Saltinho, Paraíso do Guariroba e Estância Dois Irmãos, com a recuperação de 91,2 quilômetros de área linear na bacia. A área restaurada foi mensurada por meio de um levantamento feito por drones, em uma iniciativa inédita no estado.
Proteção e riscos a APA
Apesar da APA Guariroba ter se transformado em um caso de sucesso de recuperação ambiental e de produção sustentável, a região, pela fragilidade do seu ecossistema e pela importância que tem para o abastecimento de água de Campo Grande, ainda sofre com algumas ameaças.
Por isso, o Ministério Público Estadual (MP-MS) tem, desde a criação da área de proteção ambiental, desenvolvido um trabalho de acompanhamento e monitoramento da situação da bacia.
Uma das iniciativas mais recentes é a parceria com a ARCP para a sinalização da APA, com a instalação de 95 placas indicativas e educativas. O objetivo é identificar, orientar e conscientizar os moradores e visitantes sobre a importância da região.
A primeira etapa do projeto foi realizada em 2021 (com a instalação de 16 placas), a segunda em agosto de 2023 (mais 35 placas) e a terceira em outubro (com mais 44).
O MP-MS destinou os recursos e a associação criou o layout das placas, contratou a produção e fez a instalação das placas.
“A partir do momento que as pessoas conhecerem o local, a importância dessa região, elas passarão a valorizar mais, a respeitar mais, poluindo menos e também ajudando com a preservação das matas ciliares e a limpeza dos córregos que abastecem o manancial da bacia do Guariroba”, aponta o presidente da ARCP.
Ele acredita que as placas podem ajudar a conscientizar as pessoas que visitam os rios e córregos da região e acabam deixando lixo, que pode causar a contaminação dos mananciais.
“Esperamos que com essas informações que foram colocadas, através das placas, as pessoas passem a ter um olhar diferenciado. Evitando, por exemplo, o descarte de lixo em áreas próximas para que não chegue aos córregos e que possam dirigir com mais cautela para que os animais não sejam atropelados. Que as pessoas tenham esse olhar consciente para que nos ajudem a conservar e a manter essa área de abastecimento hídrico preservada para Campo Grande e também para as gerações futuras”, conclui Claudinei.
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