30/06/2024 - Edição 540

Poder

Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes se acocoram ante Bolsonaro

Governador de SP sintetiza um dos possíveis futuros da ultradireita: implosão do Estado social e truculência policial, legitimados pela religião

Publicado em 27/06/2024 10:45 - Ricardo Noblat (Metrópoles), Bruno Paes Manso (Jornal da USP) - Edição Semana On

Divulgação Allan Santos - PR

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Se dependesse do MDB, partido de Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo e candidato à reeleição, o vice na chapa de Nunes seria outro, e não o que foi anunciado ontem. Como seria outro se dependesse do PP, do PSD, do União Brasil, do Republicanos do governador Tarcísio de Freitas e do PL de Valdemar Costa Neto.

Mas Bolsonaro bateu o pé e disse que o vice seria Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo (PL), ex-coronel da Polícia Militar paulista e ex-presidente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), um bolsonarista raiz nunca testado nas urnas. E assim será para desgosto geral.

O vice de Nunes já manifestou apoio nas redes sociais ao impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre eles Alexandre de Moraes, de quem Tarcísio se tornou amigo. Levantou suspeitas sobre as urnas eletrônicas e discursou contra a política de isolamento social em meio à pandemia da Covid-19.

À época em que comandou as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, batalhão de elite da Polícia Militar, o vice de Nunes defendeu que a abordagem policial deve levar em conta as diferenças entre moradores de bairros de elite e moradores de bairros da periferia da cidade, e quis extinguir a Ouvidoria da polícia.

Quando ocupava o cargo de presidente da Ceagesp, indicado por Bolsonaro, o vice de Nunes convidou veteranos da PM para um evento político, e disse em vídeo: “Não podemos permitir que o comunismo assuma nosso país”. A Corregedoria da PM instaurou um inquérito para apurar a conduta dele. Deu em nada.

A Ceagesp foi militarizada enquanto o vice de Nunes a presidiu. Ele nomeou 22 policiais militares para cargos comissionados. Não bastasse, alugou uma sala na sede da Ceagesp, na zona Oeste da cidade, para a instalação de um clube de tiro da empresa Seven Shooting Academia de Tiros e Comércio de Importação Ltda.

Espertamente, Nunes deixou para Tarcísio a tarefa de anunciar o nome do seu vice, e assim o governador o fez sem nenhum entusiasmo: “É um nome que agrega muita qualidade. Tem uma trajetória ilibada na Polícia Militar, foi testado como gestor no Ceagesp e se saiu muito bem. Agrega, soma, e a gente está confortável com essa indicação”.

Na sua vez de falar, Nunes justificou-se: “O Tarcísio passou a defender [o nome do ex-coronel] ,depois veio o Apoio do PP, do Republicanos, e fico satisfeito que foi uma decisão vinda do melhor ato da democracia, que é o diálogo. Já vou começar a procurá-lo para ajudar no plano de governo. Corajoso, determinado, ele não aceita questões de corrupção e crime organizado e estamos aí para enfrentar essas questões”.

O vereador Milton Leite (União Brasil), presidente da Câmara Municipal de São Paulo, não disfarçou sua contrariedade com a escolha do ex-coronel: “Temos que reconhecer que não há nenhuma experiência do vice na questão do teste de urnas. Cabe a ele agora fazer um grande trabalho e demonstrar que é merecedor do cargo de vice, fazer jus a isso. Vamos observar o que acontece daqui para frente”.

Felizes, felizes de verdade com o anúncio do vice de Nunes, ficaram os principais adversários do prefeito. Guilherme Boulos (PSOL) correu a postar nas redes sociais: “A escolha do Coronel Mello Araújo para vice de Ricardo Nunes deixa claro que é Bolsonaro quem vai mandar na cidade caso o prefeito se reeleja. O nome do policial foi enfiado goela abaixo de Nunes e seus aliados e é assim que vai ser nos próximos quatro anos se deixarmos São Paulo se transformar numa filial da milícia.”

Tabata Amaral (PSB) declarou: “Se o prefeito Ricardo Nunes resistiu ao nome do Ricardo Mello Araújo é porque não o queria como seu vice. Se foi forçado a aceitá-lo, é porque quem manda na sua candidatura é o Bolsonaro”.

A capital de São Paulo não é uma cidade bolsonarista. Em 2022, para presidente, deu a Lula 53,54% dos votos. E para governador, a Fernando Haddad (PT) 54,41%. Pesquisa Datafolha divulgada em 30 de maio último mostrou que Bolsonaro é um padrinho rejeitado por 61% dos eleitores da capital, contra 45% de Lula.

Tarcísio, a nova cara da ultradireita brasileira?

Cena 1: alunos apanham da Polícia Militar durante sessão em que os deputados paulistas aprovaram o projeto de lei que permite a criação da escola cívico-militar em São Paulo. Em tempos normais, seriam imagens escandalosas, mas apenas os integrantes das bolhas progressistas parecem chocados. Muitos apoiam um projeto pedagógico militarizado, como se o aprendizado dependesse de disciplina e de obediência.

Cena 2: o governo de São Paulo sabota o bem-sucedido programa de câmeras em uniformes das PMs, que vinham reduzindo a letalidade da corporação. A decisão ocorre depois de duas operações policiais matarem 74 pessoas na Baixada Santista. A iniciativa do governo parece passar um recado claro: a violência fardada não deve ser contestada nem controlada por ser capaz de eliminar ou amedrontar os bandidos e assim produzir ordem e sujeição.

Não adianta acusar a imoralidade ou a disfuncionalidade do método, que na história recente vem contribuindo para fortalecer as facções e as milícias. Trinta e dois anos atrás, o massacre do Carandiru, o mais letal da história paulista, deixou 111 mortos. Em vez de intimidar o crime, a chacina estimulou reação e revolta. Foi a semente do Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminal mais poderosa de São Paulo, criada no ano seguinte, com um discurso de união dos presos como resposta à covardia do Estado. No Rio, a letalidade da polícia, que sempre andou junto com a corrupção, originou as milícias.

Cena 3: lideranças da política, da economia e da sociedade civil passam a apontar o nome de Tarcísio de Freitas como representante da direita para disputar a eleição presidencial de 2026. Editorais de jornais tradicionais elogiam seus planos vazios de ajustes de gastos, como se uma alegada racionalidade econômica pudesse se sobrepor à barbárie das crenças políticas do governador forjadas no bolsonarismo. Nesse período, o governador publicou um decreto liberando as entidades religiosas da cobrança de ICMS sobre bens importados, desde que destinados à “finalidade essencial” das igrejas.

Armas, dinheiro, religião e poder. O projeto de futuro da extrema direita para o Brasil segue popular, mesmo sem a presença histriônica de Jair Bolsonaro. Com Tarcísio de Freitas, a lógica por trás desses planos fica mais clara, em resposta a um novo ciclo político autoritário que atinge não apenas o Brasil, mas diversos países do mundo.

Nesse cenário, o otimismo em torno do papel do Estado como condutor do desenvolvimento saiu do imaginário político. Alcançou seu auge no Pós-guerra, perdeu força nos anos 1980 e se fragilizou com a derrocada dos regimes socialistas. No Brasil, o papel do Estado na garantia dos direitos sociais e civis, em uma sociedade de mercado, seguiu como referência importante nas décadas de 1990 e 2000, tendo como inspiração as sociais-democracias europeias.

Essa crença forjou as diretrizes ideológicas dos partidos progressistas da Nova República. PT e PSDB se formaram depois da ditadura, a partir de nomes vindos dos movimentos sociais, sindicatos e universidades. Seus líderes apostavam que a retomada da democracia poderia criar mecanismos para que os pobres votassem em políticos que representassem seus interesses de classe, criando, quem sabe, uma sociedade menos desigual e mais justa. O liberalismo e a direita ficaram sem discurso, diante do tamanho do passivo social. Restava aos seus representantes se aliar ao governo da vez.

A defesa da violência policial, contudo, se fazia presente na desfaçatez e omissão dos governantes diante dos abusos das polícias. Era defendida de forma explícita apenas por políticos nanicos, como Bolsonaro, que tinham votos, mas não eram levados a sério e não disputavam cargos majoritários.

Esse otimismo com o papel do Estado e da política se esvaiu ao longo dos anos. O Estado não conseguiu produzir a justiça social almejada. Nas cidades, o valor da vida se revelou proporcional a quanto se ganha. Sem dinheiro, não era difícil perceber, não havia segurança, moradia, saúde, educação, higiene, e muito menos respeito. O mercado e a capacidade de ganhar dinheiro se consolidaram como a única solução viável para enfrentar a miséria. A luta se tornou mais individual do que coletiva.

Esse ceticismo abriu espaço para o fortalecimento da extrema direita, que cresceu depois da crise política e econômica acirrada pela Lava Jato. As redes sociais criaram as condições para a formação da tempestade perfeita. Suas bolhas algorítmicas popularizaram os discursos de ódio em defesa da guerra contra os inimigos da nação, fundamentais para a eleição de Bolsonaro. O desastre do bolsonarismo na pandemia e o desmonte das políticas públicas no Governo Federal não foram suficientes para reduzir os ânimos de seus apoiadores. Bolsonaro, contudo, é carta fora do baralho nas eleições de 2026.

Com Tarcísio de Freitas incensado, os contornos do projeto de futuro deste grupo ficaram mais evidentes. Riqueza e progresso devem ser garantidos pelo mercado. O Estado tem dois papéis principais. Primeiro, não atrapalhar a sanha empreendedora dos que estão focados na busca pelo lucro. De preferência, dar um empurrãozinho aos empresários aliados. Podem ser garimpeiros, grileiros, armamentistas, incorporadores da orla nas praias, os donos dos planos de saúde, líderes das igrejas, jogadores das bets, investidores do mercado financeiro, organizadores de pirâmides, entregadores de aplicativo. Em segundo lugar, cabe ao Estado armar suas polícias ou incentivar a formação de milícias para travar uma guerra em defesa da propriedade privada.

A religião tem um peso estratégico na legitimação dessa ideologia ultraliberal entre as massas, porque sacraliza a prosperidade e demoniza a luta social e o controle do mercado. O simbolismo sagrado ajuda a transformar a guerra dos neoliberais numa luta do bem contra o mal, uma suposta defesa da tradição da cultura judaico-cristã ocidental contra os comunistas e esquerdistas ateus.

Além disso, a religião ajuda a criar entre as massas a confiança na própria capacidade de ganhar dinheiro. Pobres e ricos dispostos a empreender, crentes na força do mercado, acabam se juntando do mesmo lado da guerra, que passa a transcender as diferenças entre as classes.

O problema é que esse sistema não se sustenta. Com o avanço das novas tecnologias e a crise da sociedade do emprego, o mercado vem se tornando mais restritivo. A riqueza se concentra nas mãos de poucos, criando uma pressão cada vez maior sobre as massas que ficam de fora. O protagonismo crescente dos militares é um dos sintomas desse quadro. Eles serão cada vez mais necessários para proteger os ricos em suas ilhas de prosperidade.

A popularidade dos homens fardados nas escolas também dialoga com esse fatalismo ultraliberal. Resta aos educadores formarem cidadãos disciplinados, obedientes, que aceitem fazer parte do jogo e ganhar o suficiente para respirar. Melhor esquecer o pensamento crítico, que repense a forma de viver no mundo, que domestique o mercado, que busque maneiras de distribuir a riqueza altamente concentrada entre poucos.

Diante desse Estado policial fragilizado, sem projeto de futuro, em que poder passa a ser sinônimo de dinheiro e fuzis, os grupos armados ganham cada vez mais protagonismo político. Nas principais cidades brasileiras, tiranias que controlam o cotidiano e impõem suas regras em benefício de seus negócios já fazem parte da realidade. Alguns grupos são financiados pelo bilionário mercado de drogas, altamente lucrativo por ser ilegal, com imensa capacidade de corromper agentes públicos. Já as milícias estão dentro do sistema, dada sua estreita ligação com a política.

Pode parecer novidade, mas é algo antigo e presente na história brasileira. Durante 350 anos de colonialismo, a manutenção e a reprodução da sociedade escravista misturavam dinheiro, violência armada e fé para defender os interesses de uma minoria contra a maioria da população. Os séculos passam, mas a lógica continua a mesma. Um poder que tenta se impor pela força, sem legitimidade para criar um mundo viável para a maioria dos brasileiros. O projeto de futuro da extrema direita se inspira nos piores traços de nosso passado.


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