08/10/2024 - Edição 550

Poder

STF veta farra da emenda, mas não segura pressão

Da emenda Pix de Arthur Lira aos Anões do Orçamento: um modelo imoral

Publicado em 21/08/2024 10:05 - Josias de Souza e Leonardo Sakamoto (UOL), Chico Alves e Xico Sá (ICL) – Edição Semana On

Divulgação

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O Supremo Tribunal Federal (STF) vetou as chamadas “emendas do relator”, frequentemente criticadas pela falta de transparência e critérios, mas, na atual configuração política, não parece ter força para resistir à pressão do Congresso Nacional.

O STF agiu de forma semelhante ao que fez anteriormente ao barrar o marco temporal, um entendimento que dificultava a demarcação de terras indígenas. No entanto, o tribunal tem consciência de que, em sua atual conjuntura, não conseguirá conter o avanço do Congresso. Em uma situação republicana ideal, os três poderes cumpririam suas funções constitucionais sem interferir nas atribuições dos demais. No entanto, na realidade, o Supremo muitas vezes vê-se compelido a legislar por meio de suas decisões.

O Congresso Nacional utiliza as emendas parlamentares de forma desordenada e sem transparência, com muitos parlamentares direcionando recursos às suas bases eleitorais sem justificativa clara. Essas emendas, frequentemente sem projetos consistentes e fora de um planejamento de alocação de recursos, podem acabar sendo desviadas ou usadas para fins eleitorais, como apoio a candidatos locais que futuramente se tornariam cabos eleitorais nas eleições de 2026.

O STF deveria limitar as ações do Congresso e do Executivo, e não promover audiências de conciliação. Tais audiências devem ocorrer antes de um julgamento. Mesmo assim, o STF vetou as emendas com o argumento de que a falta de transparência inviabiliza sua continuidade. No entanto, fez isso ciente de que sua decisão provavelmente não seria plenamente acatada, como ocorreu no caso do marco temporal. O Supremo, em algumas situações, tem tomado decisões não necessariamente para resolvê-las, mas para forçar o diálogo entre os atores políticos.

Um dos signatários da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que resultou na liminar do ministro Flávio Dino, do Supremo, depois reiterada em plenário, que travou a farra das emendas parlamentares, vê como positivo o resultado da reunião feita ontem entre integrantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para tratar do assunto.

O advogado Walfrido Warde alerta, porém, que foram apenas delineados os parâmetros de um acordo que poderá fazer com que esse processo ganhe mais normalidade. Tudo vai depender do texto que será apresentado em dez dias. Segundo ele, essa discussão poderá restituir ao presidencialismo brasileiro a governabilidade, mas é preciso que a sociedade fique atenta para o que Legislativo e Executivo vão apresentar como proposta.

Poderes mudam status das emendas sem bulir no quo

O escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor do romance “O Leopardo”, cunhou o raciocínio segundo o qual algo precisa mudar para que tudo continue como está. Foi mais ou menos o que aconteceu na negociação intermediada pelo Judiciário, para tentar promover entre Legislativo e Executivo um acordo capaz de colocar um fim na farra das emendas parlamentares.

Foram à mesa de almoço servido no Supremo três encrencas: 1) O valor exorbitante das emendas —coisa de R$ 53 bilhões em cifras de 2024—, 2) a pulverização das verbas em projetos de serventia duvidosa, e 3) a transparência dos gastos. No gogó, houve avanço em relação ao último item. Decidiu-se acender a luz no porão das emendas, identificando todos os projetos e os autores dos repasses.

Quanto ao valor, ficou entendido que o Congresso não quer gastar mais. Nem menos. Pagamentos que eram impositivos continuarão obrigatórios. Sobreviveram todas as modalidades de emendas —as individuais, as de bancada e as de comissão. Até as emendas Pix continuarão caindo direto na conta das prefeituras, desde que o objeto do gasto seja identificado, assegurando-se a fiscalização do TCU.

Em relação à fragmentação das despesas, concedeu-se um prazo de dez dias para que Congresso e Planalto refinem o acordo. Se funcionar, as emendas de bancada serão destinadas a projetos estruturantes nos estados. Faltou definir estruturante. E as emendas de comissão passarão a azeitar obras de interesse nacional e regional, com a hipotética participação do governo na definição dos gastos.

Enquanto aguarda pela finalização do acerto, o Supremo mantém em vigor a suspensão do pagamento das emendas. Aplicando-se à negociação a expressão do Latim status quo, que significa “o estado das coisas”, pode-se dizer que os três Poderes mudaram o status das emendas sem bulir muito no quo.

Em essência, a única certeza disponível é que o contribuinte brasileiro continua entrando na equação com o bolso, sem ter muita certeza sobre a eficácia e a probidade do uso do seu dinheiro. Há nos escaninhos do Supremo algo como duas dezenas de inquéritos sobre desvios na aplicação de verbas liberadas por meio das emendas parlamentares.

De resto, continua de pé a ordem de Flávio Dino para que a Controladoria-Geral da União esquadrinhe em 90 dias a execução das emendas Pix, isentas de projetos e de fiscalização. Se a investigação for levadas às últimas consequências, a mesa de almoço logo será substituída pelo patíbulo.

Da emenda Pix de Arthur Lira aos Anões do Orçamento

No comando do Ministério da Justiça, Flávio Dino iniciou um eficiente trabalho de combate ao crime organizado com o rastreio e bloqueio da grana das quadrilhas.

Agora no STF, Dino conseguiu, com uma só canetada, brecar as “emendas PIX”, uma farra sob o comando de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que pode levar, inclusive, ao enriquecimento ilícito de parlamentares. Fora do planejamento da União, essa dinheirama não tem menor controle, voa ao deus-dará.

O breque de Flávio Dino foi aprovado no Supremo por 11×0. Obrigou a um paralisação imediata na derrama das emendas  impositivas.

Um acordo entre o STF, Congresso e governo federal decidiu que, daqui pra frente, as emendas deverão respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. Caiu o modelo “imoral, ilegal ou engorda” criado por Eduardo Cunha e turbinado por Arthur Lira.

Um modelo que lembrava os tempos do escândalo d´Os Anões do Orçamento. Ah, isso daria uma série extraordinária na tv. Um dos chefes do esquema mandou matar a própria mulher e sumir com o corpo. Para explicar uma montanha de US$ 50 milhões, o deputado João Alves disse que era “um homem de sorte” que ganhou 200 vezes na loteria. Sentiu o drama?

Como dizia o velho repórter e contador de histórias Goulart de Andrade, vem comigo.

Enterrada viva, depois de um sequestro forjado pelo próprio marido, a morte da funcionária pública Ana Elizabeth Lofrano acabaria revelando um dos maiores escândalos de corrupção de Brasília. José Carlos Alves dos Santos, assessor especial da Comissão de Orçamento do Congresso, contratou dois bandidos para a matar a própria mulher, no dia 19 de novembro de 1992, depois de jantar romântico em um restaurante na Asa Norte da capital federal.

Ana Elizabeth havia descoberto que o marido escondia cerca de US$ 1 milhão em casa, dinheiro dos Anões do Orçamento, um esquema de desvio dos recursos públicos por intermédio de parlamentares, prefeitos e organizações sociais.

O desaparecimento da funcionária do Ministério da Educação seguiu como mistério até novembro de 1993, quando a polícia do DF encontrou uma ossada na cidade satélite de Planaltina. O detetive particular Lindauro da Silva e o mecânico José dos Santos confessaram a autoria do crime por encomenda.

Preso, Alves dos Santos culpou os deputados do esquema de fraudes pela morte da mulher.  Não conseguiu, porém, se livrar da condenação — a sentença a 20 anos de cadeia aconteceu em 1997. Nesse período, a polícia revelou até as orgias do assessor do Congresso, detalhes da relação com a amante e toda a luxúria bancada com dinheiro da corrupção.

Entre os deputados, o comandante do esquema dos Anões do Orçamento foi o baiano João Alves, na época da legenda PPR. Ao ser flagrado na roubalheira, disse que era milionário por ter acertado 200 vezes em loterias — 53 vezes apenas em 1992. “Deus me ajudou e eu ganhei muito dinheiro”, afirmou. Por causa do “milagre”, ganhou o apelido de João de Deus.

As desculpas do homem mais sortudo do Brasil não impediram a instalação da CPI do Orçamento, a segunda comissão parlamentar de inquérito da Nova República – a primeira foi a CPI de PC, que em 1992 investigou Paulo César Farias, o ex-tesoureiro de campanha do então presidente Fernando Collor de Mello, alvo de impeachment por causa destas investigações.

João Alves, o homem que acumulou US$ 50 milhões, foi parlamentar federal desde 1963. O esquema de fraudes com emendas do orçamento começou a ser articulado ainda 1972, durante a Ditadura Militar. Os outros seis anões do grupo eram os deputados Genebaldo Correia (PMDB-BA), Manoel Moreira (PMDB-BA), Ubiratan Aguiar (PMDB-SP), José Carlos Vasconcellos (PRN-PE), José Geraldo Ribeiro (PMDB-MG) e Cid Carvalho (PMDB-MA) – embora a participação de Vasconcellos e Aguiar tenha sido refutada durante as investigações.

O rótulo de anões devia-se ao time pertencer ao “baixo clero”, divisão da Câmara que abriga os políticos de menor expressão ou importância nos debates em plenário. Uma reportagem da “Folha”, porém, mostrou que o grupo ficou assim conhecido porque nenhum dos sete integrantes tinha mais de 1,62 de altura.

Em 2006, a morte de Ana Elizabeth Lofrano, que desencadeou o caso dos anões do orçamento, serviu de inspiração para o filme Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos. Vale agora, em tempos de Netflix, um seriado policial para recontar essa saga.


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