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O bolsonarismo dá passagem ao “lamarçal” que pode ser muito pior
Publicado em 06/09/2024 10:46 - Josias de Souza (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles), DW – Edição Semana On
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A um mês do primeiro turno das eleições municipais, o sonho de Bolsonaro de liderar a direita nacional vai ganhando a aparência de pesadelo. De acordo com o Datafolha, o incômodo é maior nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, três das principais vitrines da temporada.
Em São Paulo, Bolsonaro tenta se equilibrar em meio ao entrechoque dos eleitores que votaram nele em 2022. Em vez de comandar, é comandado pelas circunstâncias. Assiste atônito à briga particular entre Ricardo Nunes, o bolsonarista oficial; e Pablo Marçal, o dissidente —ambos com 22%— pela vaga de adversário do lulista Guilherme Boulos (23%), num hipotético segundo turno.
Zonzo, Bolsonaro já se dá por satisfeito se alcançar em São Paulo o objetivo estratégico de evitar a associação com uma derrota. Tarcísio de Freitas cresce em cima da hesitação do “mito”. Prega o voto útil da direita em Nunes, que se manteve vivo no Datafolha.
Escorado nas estatísticas, Tarcísio sustenta que Marçal representaria num eventual segundo turno “a porta de entrada para Boulos” na prefeitura. Se for bem sucedido na sua estratégia, o governador retira um escorpião de ultradireita do seu caminho e consolida-se como polo alternativo a Lula em 2026.
No Rio, berço político do capitão, a evidência de que o conservadorismo não é sinônimo de bolsonarismo é ainda mais eloquente. Ali, o preferido do clã Bolsonaro, Alexandre Ramagem (11%), tornou-se candidato favorito a levar uma surra eleitoral do prefeito Eduardo Paes (59%) ainda no primeiro turno.
Em Belo Horizonte, o bolsonarista Bruno Engler (13%), está embolado num pelotão intermediário, 16 pontos percentuais atrás do líder Mauro Tramonte (29%). Mantidas as tendências, as urnas de 2024 podem reservar para Bolsonaro uma notícia desalentadora: embora o capitão se considere um “cabo eleitoral de luxo”, o pedaço conservador da sociedade não parece disposto a fazer o papel de gado eleitoral.
O bolsonarismo dá passagem ao “lamarçal” que pode ser muito pior
Não será Pablo Marçal um perigo maior do que foi Bolsonaro quando se elegeu em 2018? Sei que há uma grande diferença entre eles: Bolsonaro se elegeu presidente da República. Marçal sequer se elegeu ainda prefeito de São Paulo.
Bolsonaro poderia atentar contra o Estado de Direito Democrático, e até o fez. Em mais de uma ocasião no seu governo, pressionou os militares a aplicarem um golpe. Se ele não conseguiu, por que um prefeito, mesmo da maior cidade do país, conseguiria?
Jornalistas estão dando a Marçal uma atenção extrema porque a Bolsonaro não demos até que ele levasse a facada em Juiz de Fora. Foram surpreendidos pela ascensão de Bolsonaro. Não querem ser pela de Marçal. De resto…
Com o surgimento das redes sociais e devido à crise do jornalismo enquanto negócio, faltam-nos recursos para cobrir as eleições num país-continente. Daí o foco na eleição de São Paulo, nas entrevistas e debates travados entre candidatos, no fenômeno de nome Marçal.
Bolsonaro vestiu a fantasia de candidato antissistema, mas nem ele nem seus filhos foram ou são antissistema. Enriqueceram como membros do sistema que dizem combater e vivem às custas dele. Marçal, sim, pode se oferecer como candidato antissistema.
Esperto, malandro, capaz de mandar às favas todos os escrúpulos e de desafiar as leis, um dia foi pobre, hoje é um homem rico. Enriquecerá ainda mais disputando eleições daqui por diante, mesmo que as perca. Teve 300 mil votos para deputado federal em 2018.
Por ter cometido irregularidades durante a campanha, não assumiu o mandato graças a uma intervenção da justiça. Seus adversários suplicam a Deus para que a justiça casse o registro de sua candidatura a prefeito de São Paulo. Sentem-se fracos para vencê-lo.
Uma vez derrotado ou impedido, Marçal será candidato a presidente em 2026, ou a senador. E seu exemplo será seguido por centenas ou milhares de pessoas país a fora que pensam como ele. Os extremistas de direita não precisarão mais se dizer bolsonaristas.
Por sinal, o bolsonarismo míngua com a decadência e a inelegibilidade daquele que já foi tratado como Messias. Bolsonaro não conseguiu criar um partido para chamar de seu e acabou como cabo eleitoral bem remunerado do PL de Valdemar Costa Neto.
Não deixará um herdeiro à sua altura. Seus filhos ficarão órfãos. Talvez a próxima meta de Marçal seja montar um partido para reunir os que o admiram e aumentar sua fortuna. Contará com o apoio da dita direita civilizada, que não passa da direita envergonhada.
Se ela já apoia Marçal por acreditar nas chances de eleger Ricardo Nunes (MDB), Tabata Amaral (PSB) ou Luiz Datena, por que lhe negaria apoio no futuro? A direita em estado bruto aposta em eleger 25 ou mais senadores em 2026. Caso o faça, controlará o Senado.
É isso o que mais mete medo no PT e nos partidos que giram na sua órbita. Lula pretende lançar seus mais fortes aliados para concorrer às duas vagas de senador por cada Estado. A disputa pelos governos não o interessa. Interessa sua reeleição.
Como Bolsonaro deve influenciar as eleições municipais
Mesmo inelegível até o fim dessa década, o ex-presidente Jair Bolsonaro terá um papel decisivo em boa parte dos resultados das eleições municipais de outubro. Mas não somente por seguir sendo uma liderança política relevante no cotidiano brasileiro, mantendo uma base mobilizada em torno de suas pautas, como analistas já observam há tempos, ou por ser cabo eleitoral de muitos candidatos locais.
Uma pesquisa publicada agora pela Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social Democrata da Alemanha, aponta que há um aspecto ainda mais estrutural em jogo: Bolsonaro se mantém capaz de estabelecer critérios que balizam a decisão de parte significativa do eleitorado.
“São vetores que se concentram dentro dessa grande disputa social por valores morais. E, nesse campo, ele é muito influente”, explica Thais Pavez, que integra o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da Universidade de São Paulo (USP). São questões como a defesa da família como unidade social fundamental e a oposição à legalização do aborto e à “ideologia de gênero” (a ideia de que gênero não é algo uma questão meramente biológica ou binária).
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Ela conduziu o estudo ao lado de outras duas grandes referências nas análises sobre a extrema direita no Brasil: a cientista política Camila Rocha, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e a cientista social Esther Solano, professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Sem contar que essa eleição também será profundamente marcada pela experiência da violência urbana – outro campo onde o bolsonarismo possui uma narrativa ativa. Isso tende a pesar na definição de muitos votos”, completa Pavez, lembrando que esse público também tende a apoiar uma maior flexibilização regulatória sobre armas de fogo.
Pautas nacionais sobre locais
A pesquisa se baseia em uma série de entrevistas com pessoas que votaram em Bolsonaro na última eleição presidencial, em 2022, feitas em três metrópoles do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Segundo analistas ouvidos pela DW, essas serão justamente as capitais onde Bolsonaro e o Partido Liberal (PL) vão centrar esforços para eleger candidatos aliados e tentar pavimentar a campanha presidencial de 2026.
Ao contrário de pesquisas quantitativas, em que participantes respondem questionários pré-estabelecidos, porém, o estudo da Friedrich Ebert privilegiou conversas abertas mediadas entre pequenos grupos, onde as pesquisadoras abordavam desde temas mais caros ao universo bolsonarista, como a legalização do aborto, por exemplo, passando por debates econômicos, como o papel do Estado na economia, até assuntos mais atuais, como as incursões israelenses na Faixa de Gaza.
Depois, elas concentraram todas as respostas em campos que têm dado a tônica das campanhas eleitorais. Foi assim que as pesquisadoras notaram outro fenômeno relevante: um peso maior de grandes pautas políticas, que englobam todo o país, sobre as discussões que se dão ao nível das cidades.
“É que a capilarização do bolsonarismo é muito forte. Isso faz com que dinâmicas nacionais, que antes não costumavam dar o tom dos pleitos locais, agora se reflitam bastante nos debates políticos de municípios médios e até pequenos. Isso se deve também às igrejas evangélicas, que servem como uma força mobilizadora permanente. O resultado é uma capacidade significativa do bolsonarismo de definir votos”, explica Pavez.
Em junho, uma pesquisa do instituto Quaest mostrou que o governo Lula é reprovado por 49% entre aqueles que votaram em Bolsonaro em 2022. Algumas semanas depois, o Datafolha mostrou que um terço do eleitorado brasileiro (33%) avalia negativamente o mandato do atual presidente – número que tem se mantido semelhante desde o último pleito presidencial.
Apoio de Bolsonaro é importante, mas não define voto sozinho
Outra conclusão da pesquisa é que, embora o apoio local a Bolsonaro tenda a exercer um papel importante, não será suficiente para determinar as escolhas mesmo de eleitores previamente simpáticos ao ex-presidente.
“Dois fatores ajudam a entender isso: a capacidade de cada candidato bolsonarista de desempenhar um bom papel depois de eleito e a possibilidade de ele trair o movimento”, observa Camila Rocha, autora de Menos Marx, Mais Mises (Todavia, 2021).
Ela cita os exemplos de Wilson Witzel, eleito em 2018 governador do Rio de Janeiro na mesma toada de Bolsonaro, mas que sofreu impeachment por corrupção um ano antes do fim do mandato; e João Doria, governador de São Paulo que se elegeu fazendo acenos ao ex-presidente e depois, durante a pandemia, virou seu principal rival político. “Esses dois casos foram bastante citados pelos entrevistados como exemplos de como, se a pessoa for eleita, não há controle total sobre o que ela fará”, completa Rocha.
Os contextos políticos das cidades estudadas variam, mas dão uma certa dimensão do argumento. Em São Paulo, Bolsonaro apoia Ricardo Nunes (MDB), mas não sem conflitos: o ex-presidente já deixou escapar que a aliança foi feita em meio a incertezas. Mês passado, em entrevista a uma rádio de Natal, no Rio Grande do Norte, ele disse que Nunes não era seu “candidato dos sonhos”, e emendou elogios a Pablo Marçal (PRTB). “É uma pessoa inteligente”, disse.
Camila Rocha observa essa situação com um interesse particular. “A campanha está provando o que a gente diz na pesquisa”, afirma. “Não basta o apoio formal de Bolsonaro, como Nunes já tem. Para esse eleitorado, mais importante são as ideias do candidato convergirem, e isso parece estar acontecendo mais com o Marçal. Não é trivial que ele esteja reivindicando o lugar de ‘verdadeiro’ candidato bolsonarista”, analisa.
2024 como prévia de 2026
Entre os critérios que devem pesar na decisão do eleitorado estão as narrativas dos candidatos bolsonaristas sobre valores e o programa deles para a segurança pública, além da sensação, entre apoiadores do ex-presidente, de que a “arrumação de casa” iniciada por ele em 2019 foi interrompida com a derrota nas urnas, em outubro de 2022.
As eleições municipais de agora seriam, então, um caminho para retomar esse projeto – que envolve desde uma busca pela hegemonia dos valores cristãos até um estímulo mais robusto à figura do “empreendedor”. “O diagnóstico dessas pessoas é que o Brasil vive com valores ‘invertidos’, e que o bolsonarismo é um jeito de retomar os valores corretos. Então, o voto em outubro reforça uma expectativa de transformação do país nesses moldes”, diz Thais Pavez.
Em São Paulo está o ator fundamental desse percurso: Tarcísio de Freitas, governador apontado pelos entrevistados como a principal aposta do bolsonarismo para vencer as eleições de 2026 e retomar a “arrumação” do país.
Quando as pesquisadoras perguntavam sobre o nome mais viável para esse projeto, Tarcísio superava os nomes do deputado Nikolas Ferreira (visto como “muito jovem” para o cargo, apesar de ser “combativo”) e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que, “por ser mulher, é mais vulnerável aos ataques políticos”, de acordo com alguns entrevistados.
“Eles [Bolsonaro e o PL] vão empregar todos os meios possíveis para ganhar o maior número possível de prefeituras”, afirma Rocha.
“Os bolsonaristas se reconhecem como integrantes de um processo que não acabou. É por isso que o bolsonarismo pode existir sem o próprio Bolsonaro. Só se precisa de uma liderança política viável”, explica Pavez.
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