Poder
Coach é vírus político contra o qual nem Bolsonaro está imune
Publicado em 29/08/2024 11:36 - Pedro Telles (Intercept_Brasil), Ricardo Noblat (Metrópoles), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On
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A ascensão da extrema direita no Brasil esteve umbilicalmente ligada a Jair Bolsonaro nos últimos anos. Apelidamos esse conceito de bolsonarismo.
Principal liderança de conservadores radicais, Bolsonaro conseguiu se eleger presidente do país, tornando sua trajetória política pessoal um elemento central da trajetória política brasileira.
Contudo, o conceito de bolsonarismo sempre teve duas grandes limitações. Primeiro, é um conceito maleável e de definição vaga, sendo usado no debate público para definir simultaneamente uma ideologia, um movimento e um projeto político particular – três coisas que são fundamentalmente distintas, por mais conectadas que estejam.
Segundo, é um conceito que reduz à figura de uma única pessoa (por ser construído em torno do seu nome) um fenômeno político de grande amplitude e complexidade, cujo início, o fim e o meio são compostos por muitos outros fatores relevantes.
Enquanto Bolsonaro mantinha inquestionável hegemonia no campo da extrema direita, essas limitações podiam ser mais facilmente relevadas, tendo em vista que a ideologia, o movimento e o projeto político particular moviam-se em sincronia sob a batuta de um único político que exercia domínio sobre as três frentes.
Pablo Marçal entra na jogada
Com a projeção nacional de Pablo Marçal a partir da sua candidatura à prefeitura de São Paulo, essa realidade mudou – e, por consequência, o bolsonarismo como o conhecemos até hoje morreu. As três frentes que o compunham agora seguem caminhos separados, levando a uma ressignificação de cada uma delas e do conceito de bolsonarismo em si.
Ao despontar como liderança política batendo de frente com Bolsonaro, mas defendendo em grande parte as mesmas ideias e valores do ex-presidente, Marçal torna impossível continuar chamando de bolsonarismo a ideologia que tomou o país de assalto.
É uma ideologia da qual Bolsonaro ainda pode ser o principal representante, mas que está acima dele e vai além dele, havendo nítido espaço para o crescimento de outras lideranças, capazes inclusive de derrubá-lo.
Mobilizando militantes e eleitores, até recentemente, fiéis a Bolsonaro, mas convencendo-os a apoiar um projeto político que vai contra os interesses do capitão, Marçal mostra que a base de apoio popular do ex-presidente é mais frágil do que parecia.
Há mesmo um movimento com liderança centralizada? Ou um movimento mais difuso, com coesão ideológica e um ecossistema de atores-chave dentre os quais algum pode até se destacar temporariamente, mas onde a liderança é fluida?
Ou talvez nem mesmo haja um movimento, apenas uma pulsão social habilmente explorada por diferentes extremistas, que podem ou não agir em concerto?
Deixando de ser sinônimo de uma ideologia, e tendo em xeque seu suposto movimento, Bolsonaro ainda conta com um projeto político – a única das três frentes que faz sentido continuar chamando de bolsonarismo.
Mas esse projeto nunca esteve sob tanto risco. Bolsonaro tem sido resiliente desde o fim do seu mandato, apesar de todas as adversidades, mas talvez tenha encontrado em Marçal seu arquirrival.
Se o apadrinhado Ricardo Nunes chegar ao segundo turno contra Guilherme Boulos, existe a possibilidade de Bolsonaro se manter firme como principal liderança da direita, apesar de ter que dividir esse espaço com Marçal daqui em diante. Mas se Nunes ficar atrás de Marçal, um cenário cada vez mais provável, o projeto fica desestruturado.
E o Bolsonaro?
A ascensão de Marçal não chega a ser uma surpresa para quem acompanha de perto sua trajetória e estratégia ao longo dos últimos anos. Mas isso não torna menos impressionante a forma como ele tirou do eixo o fenômeno até então conhecido como bolsonarismo.
Não é à toa que Bolsonaro e sua família estão reagindo de forma tão intensa: Marçal não é apenas mais uma ameaça ao bolsonarismo – ele é uma ameaça existencial.
Àqueles dedicados a enfrentar a extrema direita no país, o problema está mudando de forma e de cara, mas suas três dimensões continuam aí.
Daqui em diante será preciso, mais do que nunca, olhar para cada uma dessas dimensões em separado: como combater a ideologia de extrema direita no país; como enfrentar (e impedir a formação) de movimentos pautados por essa ideologia; e como derrotar projetos políticos particulares das lideranças que despontam.
Cada uma dessas frentes exige suas próprias estratégias, que precisam estar minimamente integradas por serem partes da resolução de um problema maior.
Marçal é vírus político contra o qual nem Bolsonaro está imune
Imaginou-se que os horrores que deram no 8 de janeiro funcionariam como uma vacina. Cada dose de irracionalidade reforçaria os anticorpos que protegeriam a sanidade nacional. Se a ascensão relâmpago de Pablo Marçal serve para alguma coisa é para alertar que a indignação e a resignação ainda não encontraram um ponto de equilíbrio nas veias do sistema político brasileiro.
Vacinas imunizam contra vírus rotineiros. A boça digital raivosa de Marçal revelou-se uma variante da boçalidade para a qual nem Bolsonaro está imune. A candidatura de Marçal é feita da mesma gosma antipolítica. Mas o vírus chegou ao topo do Datafolha cavalgando, além da milícia digital remunerada, uma ficha criminal e um partido com PCC.
A corrida pela Prefeitura de São Paulo invadiu o terreno do insondável. O fenômeno Marçal revelou-se até aqui imune a todas as defesas tradicionais da marquetagem. Os estrategistas dos comitês rivais perguntam aos seus botões: padrinhos poderosos, fuga dos debates e propaganda na TV são soluções ou remédios fora do prazo de validade?
Marçal não é um bom exemplo. Mas já virou um ótimo aviso. Banalizando-se em São Paulo, o surto pode evoluir para uma endemia de abjeção com potencial para infectar a sucessão de 2026. Tarcísio de Freitas talvez comece a fazer a arminha. E Lula pode estar prestes a ganhar o álibi que procurava para reivindicar um quarto mandato.
Bolsonaro já perdeu a eleição em São Paulo, vença quem vencer
“A piada virou pesadelo”, diz Pablo Marçal, bem na foto nas últimas pesquisas. Ele tem razão. Bolsonaro e Nunes foram feitos um para o outro. Bolsonaro hesitou em apoiar a candidatura de Nunes à reeleição – julgava-o pouco confiável, e não mudou de opinião. Nunes sempre soube que sem os votos de Bolsonaro, não se reelegerá prefeito de São Paulo, mas não queria carregar o estigma de ser o candidato dele.
Nunes não é e nunca foi bolsonarista. É de direita, sim, mas não de extrema-direita. Na capital paulista, Bolsonaro é rejeitado por 64% dos eleitores, de acordo com pesquisas feitas sob encomenda da campanha de Nunes. Com a ascensão repentina de Marçal, porém, Nunes não terá outro jeito. A vitória é que importa.
Queira ou não, Nunes será obrigado a sentar no colo de Bolsonaro para deter a sangria de votos bolsonaristas que migram na direção de Marçal. E, por sua vez, Bolsonaro será obrigado a apoiar Nunes sem reticências para não perder o monopólio dos votos da extrema-direita. Marçal passou a ser uma ameaça a Bolsonaro.
Se Marçal se eleger prefeito, elegeu-se contra a vontade de Bolsonaro, que sequer teve força para lançar um candidato próprio. Se perder, Marçal sacudirá a poeira e em 2026 poderá disputar o governo de São Paulo, ou uma vaga de senador, ou – quem sabe? – a presidência da República.
Salvo se o Congresso ou a Justiça derrubar sua inelegibilidade, Bolsonaro estará impedido de concorrer a qualquer cargo público até 2030. Mas ele quer influir na escolha do candidato a presidente que daqui a dois anos enfrentará Lula, quer vender caro o seu apoio, e quer eleger senador por São Paulo o seu filho Eduardo.
Tão cedo, Bolsonaro quer sair de cena. Muito menos para dar lugar a um aventureiro inescrupuloso como Marçal. Para dar lugar a um dos seus filhos, tudo bem. Para dar lugar a quem se renda às suas vontades, ele seguiria mandando. Mas para quem não lhe deveria nem um tostão, seria um péssimo negócio, um triste fim.
Não foi Bolsonaro que inventou a extrema-direita – ela sempre existiu e existirá. O feito de Bolsonaro foi pôr-se no ponto de convergência da extrema-direita com a direita dita civilizada. Há nomes que sonham em reproduzir esse feito – Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado, Ratinho Jr., Luciano Huck e até mesmo Marçal.
Bolsonaro já perdeu a eleição para prefeito de São Paulo, ganhe Nunes ou não. Boulos, por enquanto, é o único candidato com vaga assegurada no segundo turno. Ele torce para bater-se com Marçal. Caso não se eleja prefeito, a pré-fixada derrota de Boulos não será debitada na conta de Lula. Caso ele vença, Lula terá vencido.
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