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Exército diz ter dificuldade para desligar e punir até oficial sequestrador, que dirá golpista
Publicado em 28/08/2023 10:01 - Augusto de Sousa (DCM), Ricardo Noblat (Metrópoles), Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On
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O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), além das investigações que podem colocá-lo na prisão, enfrenta um novo cenário, à medida que aliados próximos dele argumentam que a falta de apoio dos militares pode ser um fator crucial para sua condenação.
De acordo com informações obtidas pela colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, a relação entre Bolsonaro e os militares sofreu um declínio, especialmente após o envolvimento do general Mauro Lourena Cid no escândalo das joias.
Antes dos recentes desenvolvimentos, os bolsonaristas e seu núcleo mais próximo esperavam que setores militares poderiam intervir junto ao Judiciário em favor de Bolsonaro e da liberdade do tenente-coronel Mauro Cid, filho do general e uma figura central nos escândalos que envolvem o ex-presidente. No entanto, a descoberta de supostos esquemas de caixa dois, nos quais tanto o tenente-coronel quanto o general estão envolvidos, teria minado essa possibilidade de intervenção dos militares nos processos judiciais.
Porém, muitos militares optaram por se distanciar da situação, deixando o ex-presidente isolado, em uma posição mais vulnerável no decorrer das investigações que estão em andamento.
As alegações de que o general Mauro Lourena Cid pode ter auxiliado na comercialização de objetos de luxo de Bolsonaro no exterior, conforme sugerido por mensagens encontradas no celular de seu filho, levantaram suspeitas de um caixa dois em favor do ex-presidente.
No conteúdo encontrado no celular de Mauro Cid, estão fotos dos objetos vendidos, sendo que, em uma delas, é possível enxergar o rosto do general Mauro Lourena Cid no reflexo da embalagem. Em outras mensagens, o ex-ajudante de ordens dizia que seu pai teria US$ 25 mil para entregar a Bolsonaro em dinheiro vivo, mais de R$ 120 mil na cotação atual.
O apoio que Bolsonaro costumava receber dos militares durante seu mandato parece ter diminuído consideravelmente, acrescentando incerteza ao seu futuro político. O desdobramento dessas investigações permanece sob incógnita, à medida que aliados e o público em geral aguardam para ver como essa dinâmica em evolução moldará o destino político de Jair Bolsonaro.
No entanto, a defesa do ex-presidente alega que os bens estavam listados no acervo privado, o que, no entendimento deles, o ex-presidente poderia vender no exterior sem que isso caracterizasse em crime. Mas eles não foram específicos sobre as razões de esconderem essas vendas.
Bolsonaro joga culpa nos militares por sua eventual condenação
Ladrão de joias e consumado golpista, Bolsonaro acrescentou mais um responsável por sua eventual condenação: os militares, seus antigos companheiros de farda.
Bolsonaro, o ingrato. Não fosse o apoio dos militares, ele não teria sido eleito em 2018; e se fosse, correria o risco de não assumir. O escândalo da rachadinha estourou entre uma coisa e outra.
Os militares ajudaram-no a governar, e até certo ponto impediram que cedesse aos seus instintos mais rudes. Sem eles, não teria se candidatado à reeleição. E sem parte deles, não teria havido o 8/1.
Com o golpe fracassado e a descoberta do roubo das joias, Bolsonaro sente-se agora abandonado pelas Forças Armadas. Esperava que elas pressionassem a Justiça para deixá-lo solto.
Ocorre que os militares atravessam também dificuldades. Uma ou mais de uma dezena deles está sendo investigada. A imagem da farda foi emporcalhada, com a queda da confiança nela.
No momento, os militares têm mais com o que se preocupar. Um tenente-coronel, Mauro Cid, ex-ajudante de ordem de Bolsonaro, está preso. O pai dele, o general Mauro Lourena Cid, pode ser.
Cid filho bateu continência a todos os desmandos de Bolsonaro nos últimos quatro anos. Cid pai cedeu aos apelos do filho e meteu-se na operação ilegal de recompra das joias vendidas no exterior.
A pressão que os militares exercem sobre a Justiça, hoje, é para livrar os seus de penalidades. Bolsonaro deixou de ser um deles.
Exército diz ter dificuldade para desligar até oficial sequestrador
O general Tomás Paiva, comandante do Exército, vive uma realidade paradoxal. Considera vital punir com rigor militares envolvidos em crimes contra a democracia e outras delinquências. Mas alega que a legislação impõe dificuldades conciliar desejo e prática. Em conversa com a coluna, o general contou que não conseguiu desligar do Exército nem mesmo um capitão preso em flagrante por tráfico de drogas e um tenente envolvido com sequestro relâmpago.
Segundo o general, é mais fácil punir os militares indisciplinados do que os processados judicialmente por crimes graves. “Quando o camarada não se adapta à disciplina, eu posso abrir contra ele o Conselho de Justificação. Mas não posso abrir quando o caso está no âmbito da Justiça”, disse Tomás Paiva. “Temos que esperar o trânsito em julgado da sentença. Isso demora.”
O Conselho de Justificação é uma espécie de tribunal de honra dos militares. Nele, tramitam processos administrativos que, no limite, podem resultar na expulsão de oficiais considerados indignos de integrar os quadros das Forças Armadas. Nos processos judiciais, o desfecho é mais lento. “Se for condenado a mais de dois anos de prisão”, disse Tomás Paiva, “o Ministério Público Militar representa contra o oficial junto ao Superior Tribunal Militar. Normalmente, demora mais um ano.”
Tomás Paiva disse que queria “mandar embora de imediato” o capitão traficante e o tenente sequestrador. Lamentou não ter conseguido “fazer os desligamentos, porque o entendimento que a gente tem é que tem que esperar o trânsito em julgado da sentença.” Ambos estão em São Paulo. O traficante, já condenado em primeira instância, cumpre prisão em regime semiaberto. O sequestrador, com formação na Academia Militar das Agulhas Negras, está preso na Polícia do Exército.
O general revelou desconforto ao comentar as aparições públicas do tenente-coronel Mauro Cid uniformizado. Disse ter explicado até para Lula que o uso do traje é um direito assegurado aos oficiais da ativa pelo Estatuto dos Militares. Contou que o coronel Jean Lawand Júnior pediu autorização para depor à CPI do 8 de Janeiro, no mês passado, em trajes civis. “Eu rapidamente concedi a autorização”, disse Tomás Paiva.
O comandante do Exército recordou que, na época em que foi ajudante de ordens do então presidente Fernando Henrique Cardoso, interrompeu as atividades durante a campanha à reeleição. Nessa época, disse ele, quem trabalhava na ajudância de ordens era orientado a não usar farda, “para separar atos de Estado de eventos partidários”. Lamentou que isso tenha “se misturado.”
Tomás Paiva disse que sua “grande preocupação é a de não cometer arbitrariedade”. Avalia que isso não se confunde com passividade. Revelou que, quando ainda atuava como comandante militar do Sudeste, puniu um oficial que postou nas redes sociais foto uniformizado em evento de campanha com Bolsonaro. “Ele pegou cadeia e ninguém ficou sabendo”.
No comando do Exército, Tomás Paiva anulou a nomeação do coronel Lawand Júnior para um posto no exterior. E afastou do Gabinete de Segurança Institucional todos os militares suspeitos de ter contribuído, por inação, com a invasão do Planalto no 8 de janeiro.
Comandante do Exército faz um discurso dúbio, débil e doloroso
Não são as perversões individuais que arruínam uma corporação, mas o modo como essa corporação reage depois de conhecê-las. Nesta sexta-feira, Dia do Soldado, o general Tomás Paiva, comandante do Exército, disse em discurso que as Forças Armadas conquistaram prestígio por conta do respeito à Constituição. “Esse comportamento coletivo”, disse ele, “não se coaduna com eventuais desvios de conduta, que são repudiados e corrigidos.” A manifestação soou dúbia, débil e dolorosa.
Deve-se a dubiedade ao fato de o general ter mencionado uma certa respeitabilidade sem se dar conta de que o respeito às Forças Armadas, por incerto, vale agora apenas até certo ponto. O ponto de interrogação. A debilidade dos argumentos saltou do trecho em que o comandante do Exército chamou de “eventuais desvios” os crimes atribuídos aos militares, alguns já nitidamente demonstrados.
A fala de Tomás Paiva foi dolorosa porque passou a impressão de que o general perdeu-se na generalidade ao insinuar que desvios eventuais serão “repudiados e corrigidos.” Repúdio e correção são dois eufemismos —palavras mais agradáveis que o general utiliza para se esquivar de dizer a única expressão aceitável no momento: Punição exemplar.
Horas depois do discurso do comandante do Exército, o tenente-coronel Mauro Cid foi levado da cadeia à Polícia Federal. Atendeu a mais uma intimação para prestar depoimento. Estava fardado. Ostentou o fardamento também na véspera, em depoimento à CPI do Golpe que funciona no Legislativo de Brasília.
Algo está muito errado quando uma corporação acha que está fazendo tudo certo e não consegue nem mesmo despir a farda de um oficial que a desonrou. Isso não se resolve apenas embaralhando fatos. As Forças Armadas precisam mostrar alguma carta.
Arma-se na CPI uma blindagem para os generais bolsonaristas
Vários biógrafos de Napoleão retratam como verdadeiras uma cena e uma frase que têm cheiro de lenda. Numa de suas batalhas —alguns autores dizem que foi em Arcole, outros em Lodi—, Napoleão postou-se à frente de sua tropa e enfrentou uma tempestade de balas. Soldados tombavam à sua direita e à esquerda. Advertido para o perigo, Napoleão inflamou-se: “Ainda não foi fundida a bala que irá me matar”. Ocorre o oposto com os generais do exército bolsonarista.
Arma-se na CPI do 8 de Janeiro uma blindagem para um par de generais: Paulo Sérgio Nogueira e Lourena Cid. O primeiro chefiava o Ministério da Defesa quando o hacker e estelionatário Walter Delgatti foi enviado por Bolsonaro à pasta, em agosto do ano passado, para instruir militares no questionamento às urnas e ao sistema eleitoral. O segundo cedeu a conta bancária para que o filho Mauro Cid, o tenente-coronel faz-tudo de Bolsonaro, ocultasse dinheiro obtido com a venda ilegal de joias da União.
O deputado Arthur Maia, presidente da CPI, retirou da pauta da comissão requerimentos que pediam a convocação dos generais. Fez isso depois de se encontrar, nesta quarta-feira, com o comandante do Exército, general Tomás Paiva. Também nesta quarta, o ministro José Múcio (Defesa) visitou o colega Flávio Dino (Justiça). Foi informado de que a Polícia Federal não fornecerá os nomes dos militares que se reuniram com Delgatti. A investigação é sigilosa. Múcio foi bater à porta do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no Supremo. Uma evidência de que a Defesa, sob o general Paulo Sérgo, não estava mal armada apenas de integridade constitucional. Faltava também transparência ao paiol do general.
Não há dúvida de que militares se acumpliciaram com delinquências e obscenidades nos quatro anos de Bolsonaro. Quando dispõem da possibilidade de se exibir em cena aberta, apresentando explicações, batem em retirada. Blindagem semelhante já havia sido fornecida ao general Braga Netto na CPI da Covid. Chefe da Casa Civil no auge da pandemia, o general deveria ter coordenado o enfrentamento ao vírus. Associou-se ao negacionismo homicida do capitão. Foi premiado com uma candidatura a vice.
Napoleão sobreviveu aos tiros. Morreria muitos anos depois -de úlcera, de câncer ou envenenado por seu carcereiro— na ilha de Santa Helena. Certos generais brasileiros, arriscam-se a ser abatidos mesmo no esconderijo. Podem escapar da CPI. Não terão como fugir, entretanto, dos interrogatórios na Polícia Federal.
Afora o risco das balas perdidas, há o vexame. No caso dos generais bolsonaristas, a coragem consolida-se como uma qualidade fugidia. Some nos momentos de maior necessidade. O Brasil sem farda não fica atrás. Por receio de uma hipotética reação dos militares, o país desperdiça mais uma oportunidade para discutir que tipo de Forças Armadas precisa ter.
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