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Lula sepultará alianças de extrema direita e reposicionará Brasil no mundo

O que muda nos BRICS com a eleição do novo presidente

Publicado em 07/11/2022 10:47 - Jamil Chade (UOL), Michele de Mello (Brasil de Fato) – Edição Semana On

Divulgação Outras Mídias

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Sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil desenhará uma nova geografia de alianças internacionais. Em temas como clima, direitos humanos e integração, os responsáveis pela nova política externa já preparam para uma transformação radical da inserção internacional do Brasil, sepultando algumas das principais iniciativas da extrema direita.

Um dos anúncios mais esperados deve ser a criação de um bloco com Indonésia e República Democrática do Congo, para fortalecer a defesa das florestas. Juntos, os três países contam com 52% das florestas tropicais primárias do mundo. A meta será a de mostrar compromisso com a luta contra o desmatamento, mas também pressionar para que haja uma contrapartida dos países ricos. Não se exclui a possibilidade de que outros governos se unam à iniciativa, o que na prática distanciaria o Brasil de um bloco de países reticentes a lidar com temas ambientais.

Ao mostrar uma nova aliança, o que o governo Lula faz ainda é se credenciar para o debate internacional e buscar retomar o protagonismo do Brasil em outras áreas. A avaliação entre os formuladores da política externa, porém, é que será com a questão da floresta que o país pode recuperar espaço de credibilidade. A aliança com os demais emergentes, portanto, seria um instrumento nesta direção.

Outra iniciativa deve ser ainda a costura de uma nova relação com a América Latina, inclusive em temas de preservação do meio ambiente. Gustavo Petro, presidente da Colômbia, chegou a acenar para a possibilidade de que um encontro com Lula ocorra nos próximos dias, durante a escala que ambos fariam em Cabo Verde até chegar na Cúpula do Clima, no Egito.

Na prática, o Brasil retoma da ideia da Unasul e enterra de vez iniciativas estabelecidas por governos de direita na reunião e que eram vistas como plataformas para fazer avançar projetos de Donald Trump.

Também fica enterrado qualquer sinal de uma eventual retomada do Grupo de Lima, aliança que se estabeleceu na região como forma de pressionar o regime de Nicolas Maduro, na Venezuela. O bloco já havia entrado em colapso com a vitória de outros governos progressistas na região. Mas o fim da gestão Bolsonaro representa, segundo diplomatas, seu último prego no caixão.

O Brasil ainda deve sair da aliança ultraconservadora que, nos últimos anos, tentou modificar a agendar internacional de direitos humanos e propor restrições em questões de direitos reprodutivos e sexuais.

A iniciativa seguirá o mesmo caminho adotado pelo governo de Gustavo Petro que, ao assumir a presidência da Colômbia, abandonou o grupo. Joe Biden, em seu primeiro dia de governo, também anunciou a saída imediata dos EUA da aliança.

A aliança foi costurada pelos governos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, com a então ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, e o então chanceler Ernesto Araújo no comando. A meta do grupo – que ganhou o nome de Consenso de Genebra – era o de impedir e até verter qualquer referência em organismos internacionais a temas sobre direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual para meninas e mulheres.

Oficialmente, o objetivo era o de lutar contra uma suposta agenda dos organismos internacionais de promover o aborto. Em entidades como a OMS e outras agências da ONU, a insistência não é pelo aborto, mas por uma defesa da vida das mulheres, a descriminalização dos atos e o respeito pelas constituições nacionais.

A aliança, porém, reuniu governos com péssimos resultados em termos de defesa das mulheres, incluindo Arábia Saudita e Bahrein. O bloco ainda conta com governos de extrema direita da Hungria e da Polônia.

Derrotados nas urnas, membros do governo de Donald Trump mantiveram o ativismo para preservar a existência do grupo. Valerie Huber, subsecretaria para Assuntos de Família, passou a ser uma figura constante em debates entre partidos e movimentos de extrema direita pelo mundo.

Antes de deixar o cargo, porém, ela enviou um e-mail a apoiadores em todo o mundo para pedir que a agenda não fosse abandonada e recomendou que todos entrassem em contato com a embaixada do Brasil em Washington, que serviria como ponto focal da aliança.

Não por acaso, a notícia sobre uma possível saída do Brasil deixou membros da aliança preocupados com a capacidade de o grupo manter sua relevância. Para diplomatas do pacto, colocar o profissionalismo do Itamaraty para promover pautas ultraconservadoras teve um impacto real.

Além disso, o bloco contava com a diplomacia paralela de bolsonaristas que percorriam o mundo promovendo a agenda. Ângela Gandra, secretaria da Família na pasta liderada por Damares Alves, também atuou como ponte entre grupos ultraconservadores de diversos países e o governo Bolsonaro.

Na ONU, a vitória de Lula foi comemorada como um sinal de que a agenda que tentava minar direitos básicos seria enfraquecida.

Camilla Asano, diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos, também defende um reposicionamento do Brasil. “Com a mudança de governo, um dos pontos fundamentais é o Brasil reconquistar uma posição de respeito e coerência no âmbito internacional”, disse.

Lembrando que tanto a Constituição como a campanha eleitoral de Lula têm os direitos humanos como foco, ela defende que o novo governo faça uma “revisão apurada dos atos de política externa que levaram o Brasil a ficar em uma posição tão isolada e sem prestígio”.

Uma delas, segundo Camila Asano, é o Consenso de Genebra. “Ela representa uma aliança de governos de extrema direita e outros governos de cunho democrático que vieram a substituir esses líderes extremistas já se retiraram”, disse ela, numa referência aos presidentes dos EUA e Colômbia.

“Seria mais que natural esperar que houvesse uma revisão imediata desse governo que assume em janeiro com relação à participação em alianças que foram construídas como forma de articulação da pela extrema direita, para retomar o prestígio e respeito internacional, que é um ponto marcante da história do Brasil e que nos últimos anos foi prejudicada”, completou.

O que mudar nos BRICS com a eleição de Lula

A eleição de Luiz Lula da Silva para presidir o Brasil movimentou a diplomacia global. Em menos de 24 horas da divulgação do resultado oficial, Lula recebeu a visita do presidente argentino Alberto Fernández e felicitações de todos os chefes de Estado e de governo da América Latina. Além do reconhecimento regional, os líderes das maiores potências econômicas mundiais também manifestaram sua disposição em trabalhar com o presidente eleito.

O mandatário chinês, Xi Jinping, que também acaba de ser reeleito para assumir um terceiro mandato, disse que a China está pronta “para trabalhar com Lula para fortalecer conjuntamente a parceria estratégica global China-Brasil para um novo nível, de modo a beneficiar os dois países e dois povos”.

O mandatário russo, Vladimir Putin também parabenizou o petista e disse que espera garantir, através de esforços conjuntos, “o desenvolvimento de uma cooperação construtiva russo-brasileira em todas as áreas”, publicou em comunicado.

Com o alinhamento do Brasil, Rússia e China pode abrir-se um novo período de cooperação interna no BRICS, bloco criado em 2009, durante o segundo mandato de Lula, entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Durante a última Cúpula Anual dos BRICS, em junho deste ano, o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou um fundo de US$ 4 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões) para a cooperação Sul-Sul, prometendo a abertura de um centro tecnológico para avançar nos mecanismos da chamada revolução 4.0 e a abertura de um laboratório, com sede no território chinês, para desenvolvimento de medicamentos de interesse comum do bloco.

As diretrizes do 14º Plano Quinquenal chinês, que será aplicado até 2025, preveem o financiamento de projetos de economia verde na América Latina, por meio dos seus “Policy banks”, China Development Bank e China Eximbank.

O encarregado de negócios da embaixada chinesa no Brasil também disse que Pequim está disposta a diversificar o comércio, aumentando o valor agregado das importações brasileiras. Desde o boom das commodities, em 2003, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, e responde pela compra de 70% da soja cultivada no país.

“Temos condição de melhorar nossa relação com a China, mas diante da ausência de um projeto político mais claro, diante da diferença de poder bélico, dos investimentos em tecnologia, e da diferença do nível de poder sobre a politica econômica, eu sou cético sobre uma inserção diferente do Brasil no mercado internacional, a não ser que apostemos todas as fichas no desenvolvimento tecnológico”, destaca ao Brasil de Fato o economista Francisco Pessoa.

Para a diretora do BRICS Policy Center da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Ana Saggioro Garcia, dificilmente a China abandonará a importação de commodities, já que o agronegócio brasileiro é o único capaz de produzir alimentos na escala demandada pelo mercado chinês.

“Uma alternativa para a inserção da América Latina nos mercados globais de valor seria o ideal, mas os fluxos de comércio e investimento que a China traz são todos voltados para a indústria extrativa ou para a cadeia do agronegócio”, afirmou.

As previsões do BRICS Policy Center, indicam que as exportações de proteína animal e grãos da região para a China tendem a aumentar, em função do crescente alargamento da classe média chinesa. O Plano Quinquenal prevê saltar de 400 milhões para 700 milhões de pessoas consideradas de “classe média”.

O economista Francisco Pessoa concorda: “precisamos pensar numa estratégia de inserção autônoma. Não podemos contar com a boa vontade dos nossos parceiros, porque são relações de conveniência. O que realmente norteia a decisão dos importadores chineses por um mercado ou outro vai ser ver quem está vendendo mais barato, por mais que haja uma boa vontade do governo chinês em relação ao Brasil”.

A volta dos governos do PT no Brasil poderia ser o estímulo que faltava para garantir a expansão do bloco. A Argentina já formalizou seu pedido de ingresso e a visita de Fernández a Lula pode apontar esse interesse mútuo.

“A meu ver não há grande mudança do bloco em si, mas a mudança de um governo que dará mais importância estratégica ao BRICS”, destaca Ana Saggioro Garcia.

Relações ambíguas 

Apesar das relações tensas do ponto de vista diplomático entre Brasil e China, durante o início do governo de Bolsonaro, o país não perdeu espaço dentro da gestão econômica do bloco, conseguindo nomear o brasileiro Marcos Troyjo para presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), também conhecido como Banco dos BRICS, e manter nove projetos apoiados pela entidade bancária, sendo o país com maior acesso a financiamento.

“É impressionante como Bolsonaro utilizou o banco do BRICS a seu favor sem que houvesse qualquer constrangimento”, comenta a professora Ana Saggioro Garcia. Em 2019, além de nomear Troyjo para a presidência do NBD, o governo brasileiro também garantiu financiamento para a mineradora Vale, no mesmo ano do crime de Brumadinho.

Para a pesquisadora esta seria mais uma evidência de que não se pode afirmar que os BRICS são uma aliança contra-hegemônica.

“A aliança entre China e Rússia dá esse caráter de um BRICS mais geopolítico, o que não é anti-hegemônico, porque a disputa por hegemonia significa que estes países criaram formas de convencimento no aspecto cultural e isso não acontece. O modelo chinês ou o modelo russo não necessariamente conquistam corações e mentes pelo mundo”, destaca.

No entanto, para a diretora do BRICS Policy Center, uma postura mais altiva do Brasil poderia ser decisiva para colocar fim à guerra na Ucrânia.

“O ideal é que o conflito cessasse, mas para isso é necessário um mediador. Hoje não há esse mediador de peso em um nível internacional. Ninguém tem essa legitimidade no momento, a ONU não está agindo nesse sentido, e o Brasil de Lula poderia assumir esse papel”, defende Ana Saggioro Garcia.

O grupo, criado em 2009, representa hoje 26% do PIB global, 20% do comércio internacional e concentra cerca de 42% da população mundial. De 2016 para cá, com o golpe sobre Dilma Rousseff, apesar da continuidade das atividades do grupo, alguns projetos foram engavetados, como a criação de uma universidade conjunta.

Durante 2022, foram realizados cerca de 50 encontros para debater áreas como tecnologia, segurança e comércio. Além da Argentina, México, Irã e Nigéria são alguns dos países que já expressaram seu interesse de aderir ao Brics. No entanto, a admissão deve ser por consenso de todos os membros.


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