Poder
Rentismo sente cheiro de sangue e quer ditar a política econômica de Lula
Publicado em 09/05/2023 10:25 - Paulo Nogueira Batista Jr. (DCM), Josias de Souza (UOL), Tiago Pereira (RBA), Wellton Máximo (Abr) - Edição Semana On
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
O presidente Lula indicou o economista Gabriel Galípolo para a Diretoria de Política Monetária do Banco Central. Foi como se sinalizasse para o neto de Roberto Campos que sua renúncia —agora ou a qualquer hora— seria bem-vinda. Como o Banco Central dispõe de autonomia legal e o mandato de Roberto Campos Neto, atual chefe da instituição, só termina em dezembro de 2024.
Egresso do mercado financeiro, Galípolo excedeu as expectativas como secretário-geral do Ministério da Fazenda. Agregou ao preparo técnico uma insuspeitada habilidade política. Cativou Lula. Transita bem no Congresso. Relaciona-se civilizadamente com o próprio Campos Neto.
O presidente Lula tem feito críticas sempre pertinentes, quase sempre certeiras, à política de juros do Banco Central. O ministro Haddad há algum tempo vem pedindo harmonia entre as políticas monetária e fiscal. Faz todo sentido. O termo mais usado na literatura é coordenação fiscal-monetária. Em todos os países razoavelmente organizados, mesmo um BC autônomo se vê obrigado a coordenar as suas ações com as do Tesouro. Isso significa não só a troca regular de informações entre as duas instâncias, mas o cuidado de levar em conta as ações da outra parte na definição e implementação das suas. Se há alguma prevalência, esta é das autoridades fiscais, que representam o governo eleito. Em alguns países, o Tesouro tem até mesmo representação formal nos comitês que definem a política monetária.
O ministro Haddad, a bem da verdade, não se limita a lançar apelos públicos em prol da harmonia. Vem fazendo o possível para aplacar o BC e, mais importante, a base social da autoridade monetária – a Faria Lima, também conhecida como turma da bufunfa. Não é fácil, leitor, mas o Ministro da Fazenda se esforça. Em janeiro, anunciou um pacote de ajuste fiscal. Em seguida, abandou ou postergou o aumento das metas de inflação, aceitando os argumentos do BC de que isso seria contraproducente. Em abril, anunciou um “arcabouço fiscal” com travas ao gasto público, na esperança de convencer o BC de que o risco fiscal será pequeno daqui para a frente.
Haddad deu sinais, além disso, de que pretende negociar com o presidente do BC os nomes dos dois novos integrantes da diretoria da instituição. Pela lei de autonomia, é prerrogativa do Presidente da República nomear agora dois dos nove integrantes da diretoria do BC e do Copom. Os mandatos de dois diretores venceram em final de fevereiro e o governo, não se sabe bem por que, ainda não indicou os substitutos. No momento em que escrevo, início de maio, as indicações continuam pendentes. Se dependesse apenas da Fazenda, os nomes seriam submetidos à aprovação de Roberto Campos Neto. Não quero ser injusto, mas é a impressão que a Fazenda está passando. Na verdade, o próprio ministro deu declarações nesse sentido há algum tempo. É mais do que apenas impressão, portanto.
Banco Central, um Quarto Poder
Os apelos de Haddad em favor da harmonização têm caído no vazio até agora. É que o comando do BC vê a proposta como tentativa velada de suprimir ou condicionar a sua sacrossanta autonomia. O BC brasileiro tem a pretensão extravagante, tudo indica, de definir os seus passos sem considerar a política do Tesouro.
Vamos ser mais claros. A verdade é que o BC se comporta como Quarto Poder. Não é apenas autônomo, mas independente. Isso ao arrepio do que a lei pretendia. A distinção convencional, incorporada à legislação brasileira, estabelece que o BC autônomo tem a liberdade de buscar o cumprimento de metas que lhe foram fixadas pelo poder político eleito, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN). Já um BC independente teria a prerrogativa de fixar as próprias metas de inflação. Essa distinção, no caso brasileiro, é mais teórica do que prática. Ocorre que o BC tem um dos três votos do CMN; os dois outros são da Fazenda e do Planejamento. Além disso, o BC exerce a secretaria do Conselho, o que lhe confere poder adicional. Para completar o quadro, a Fazenda e o Planejamento não conseguem ou não desejam, ao que parece, fazer face à ortodoxia do BC.
Sentindo cheiro de sangue, a Faria Lima avançou. O comando do BC já dá repetidos sinais de que pretende enquadrar a política econômica do governo eleito. Veja bem, leitor, não apenas a política fiscal, que deve fazer “o dever de casa” a que se refere insistentemente a ministra Tebet, mas também os bancos públicos federais, que têm sido admoestados pelo BC, em seus comunicados e atas de reuniões, a não adotar políticas que visem estimular a atividade econômica, pois isto reduziria, supostamente, a eficácia da política monetária.
Governo de mãos amarradas
A prevalecer a “harmonia”, tal como entendida pelo BC, o governo ficará de mãos atadas, inerte, provavelmente incapaz de agir para relançar uma economia que está estagnada há dez anos! A política fiscal, limitada pelo arcabouço, conseguirá orientar-se para um papel ativo? O governo poderá determinar ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica que forneçam um volume de crédito suficiente, a taxas e prazos atrativos, para destravar os investimentos na economia brasileira? Se depender do BC, não, nunca e jamais. Ficarão todas essas instâncias submetidas, harmonicamente, ao objetivo de assegurar a estabilidade monetária e o cumprimento das metas de inflação. O presidente da República, por sua vez, poderá continuar, sossegado, as suas críticas aos juros altos. A harmonia continuará sem sobressaltos.
Repare, leitor, que essa “harmonia” inclui também o direito que se reserva o BC de lançar petardos contra a política fiscal! A política de juros altos, por exemplo, eleva o custo da dívida e o déficit público. Mas essa é uma fonte de “risco fiscal” que, Deus sabe por que, não precisa ser considerada. Os juros altos derrubam, também, os níveis de atividade e de emprego, reduzindo as bases de incidência da tributação e, tudo o mais constante, as receitas do governo. Em ambiente de desaquecimento da economia, qualquer tentativa de aumentar a arrecadação, ou de tentar mantê-la estável, mesmo sem necessariamente recorrer a novos impostos ou aumentos de alíquotas, como pretende o ministro da Fazenda, encontrará tenaz resistência dos contribuintes, que redobrarão seus esforços para escapar da tributação.
Vamos elaborar um pouco esse ponto. O arcabouço fiscal estabeleceu, como metas centrais, déficit primário zero em 2024 e superávits nos anos seguintes. Se a economia continuar estagnada ou, pior, entrar em recessão, o esforço para alcançar a meta será maior e tenderá a acentuar a tendência à estagnação da economia. A política fiscal será pró-cíclica, em outras palavras. Uma solução para evitar a estagnação/recessão seria adotar medidas fiscais expansionistas. Mas o arcabouço fiscal dará espaço para uma política antirrecessão? Duvidoso, dadas as travas à despesa pública inseridas no marco fiscal. Outra solução seria acionar os bancos públicos federais para prover o crédito que os banco privados não proveem, especialmente em períodos de juros altos e estagnação. Possível? Em tese, sim, mas o BC já avisou que isso atrapalha a política monetária…
Finalmente, não vamos esquecer do seguinte. Os déficits públicos, desde Keynes, são vistos como admissíveis em períodos de estagnação ou recessão. Nessas situações, recomenda-se deixar os estabilizadores automáticos atuarem (isto é, a retração cíclica da carga tributária e o aumento de certas despesas ligadas à atividade econômica) e inserir componentes anticíclicos na política fiscal, expandindo por exemplo investimentos públicos e transferências sociais, com efeitos em termos de desconcentração da renda e multiplicadores da demanda e da atividade.
Veja o absurdo, leitor. O aumento do déficit público resultante dos juros altos não tem qualquer efeito positivo. Eleva o risco fiscal, sem benefícios em termos de reativação da economia e com efeito concentrador da renda. Só mesmo na Faria Lima essa política merecerá aplausos – e frenéticos. Simples entender por quê. Os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Beneficiam todos aqueles que têm poupança financeira ou reservas de caixa aplicadas em títulos públicos e outros ativos. Ora, os pobres e remediados, e mesmo a classe média baixa, pouco ou nada possuem em termos de poupança financeira. Quem recebe a renda adicional são os super-ricos – sobretudo os bilionários, as grandes empresas e os bancos que têm aplicações vultosas em títulos públicos e outros ativos líquidos. Vida mansa. Alta rentabilidade, com liquidez e sem risco. O paraíso do rentista.
Esses mesmos aquinhoados não gastam nada ou quase nada da renda adicional que recebem em função da generosa política do BC. O dinheiro recebido fica entesourado e aplicado em títulos públicos e outros ativos. Não circula na economia, nem ajuda a reativá-la.
Concluo aqui essa diatribe que já me saiu longa demais. Já não tenho, confesso, muita esperança de ajudar a modificar o quadro macroeconômico. O que escrevi aqui é apenas o desabafo de um brasileiro que assiste há décadas, revoltado, a repetição dos mesmos absurdos.
Votação do arcabouço fiscal deve ficar para daqui a duas semanas, afirma Haddad
Haddad pediu ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para adiar a votação do projeto do novo arcabouço fiscal. Inicialmente a votação da proposta iria ocorrer nesta semana. Mas tanto Haddad quanto Lira estarão viajando. Lira vai aos Estados Unidos, para reunião com investidores.
Haddad vai ao Japão para encontro de ministros do G7 de 8 a 15 de maio. O Brasil não integra o grupo mas está convidado para a reunião, junto ministros de Índia, Indonésia, Coreia do Sul e Cingapura. A cúpula dos chefes de Estado ocorre de 19 a 21 deste mês, mas Lula ainda não decidiu se vai a Hiroshima.
“A data da votação ficou para, não a semana que vem, a outra, quando nós já estivermos no Brasil”, disse Haddad em entrevista, após encontro com Lira na Residência Oficial da Câmara, em Brasília. Também participou da reunião o deputado Claudio Cajado (PP-BA), relator do arcabouço.
Para Haddad, sua presença no Brasil é importante para ajudar a tirar dúvidas de redação ou interpretação sobre o projeto. “É uma coisa muito importante, que a gente espera que tenha vida longa no Brasil, que é a nova regra. E que ela esteja bem ajustada às necessidades do país”, afirmou.
O ministro se mostrou otimista com a aprovação do arcabouço. Nesse sentido, citou que Cajado tem ouvido “muitos elogios” ao trabalho da equipe econômica do governo. E disse que “alinhou” com o relator a “espinha dorsal” do projeto, que inclui responsabilidade fiscal, mas com “flexibilidade e inteligência”.
“Os indicadores estão mostrando que nós estamos no caminho certo. Estamos com projeção de crescimento maior este ano, já por parte de vários analistas do mercado. Estamos com um câmbio controlado, apesar da turbulência internacional. Nós temos os dados de arrecadação mostrando que é possível a gente projetar um equilíbrio das contas no curto prazo. Então estamos no caminho para deixar o Brasil pronto para decolar”, afirmou Haddad.
Além da nova regra fiscal, o ministro destacou que a reforma tributária e as reonerações fiscais criam condições para o crescimento econômico e a atração de mais investimentos. “Temos aí uma estrada pavimentada para o Brasil seguir seu rumo, com crescimento compatível com o potencial do país. Faz 10 anos que o Brasil não cresce. Então temos que tomar as medidas necessárias para o país voltar a crescer, gerar emprego de qualidade, com inflação controlada e distribuir melhor a renda”.
Questionado sobre a ausência de infração em caso de descumprimento da nova regra fiscal, Haddad rebateu: “Isso é uma coisa muito atrasada, quase medieval”. “Às vezes a gente parte para uma regra, que é uma jabuticaba brasileira, e que não funciona, como não funcionou nos últimos quatro anos”, disse o ministro, fazendo alusão ao teto de gastos. O mais importante, segundo ele, é que o novo arcabouço tem “metas adequadas”, com incentivos e desincentivos para manter os gastos públicos dentro dos parâmetros estabelecidos pela nova regra.
Entenda a diferença entre novo arcabouço e teto de gastos
O novo arcabouço fiscal substituirá o teto de gastos que vigora desde o fim de 2016. Mas, afinal, qual a diferença entre a futura regra e a atual?
Haddad afirmou que a União teria de cortar R$ 30 bilhões em despesas obrigatórias em 2024, caso o teto fosse mantido. Segundo ele, os cortes atingiriam não apenas gastos discricionários (não obrigatórios), como água, luz, internet, material de escritório e telefone, mas também afetariam programas sociais.
“Se mantido o teto de gastos, teríamos que fazer corte não mais sobre despesa discricionária. Teríamos de cortar R$ 30 bilhões das despesas obrigatórias se [o teto] fosse mantido a partir de 2024. Para subvencionar custeio?”, explicou o ministro em evento a um banco de investidores.
Para entender o que mudará com o novo arcabouço, é necessário compreender o processo que levou à inviabilidade da continuação do teto de gastos.
Promulgado com previsão de durar 20 anos, o teto federal de gastos limita o crescimento dos gastos primários da União pela inflação acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). As despesas executadas em 2016 passaram a ser corrigidas pelo indicador todos os anos, com a inflação sendo aplicada sobre o limite do ano anterior.
A Constituição permite que o teto seja extrapolado em alguns casos: créditos extraordinários (relacionados a gastos emergenciais), capitalização de estatais não dependentes do Tesouro (mecanismo usado para sanear problemas financeiros ou preparar empresas para a privatização), gastos da Justiça Eleitoral com eleições e transferências obrigatórias da União para estados e municípios.
Dentro do limite global, há limites para os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público da União e Defensoria Pública da União, com alguns órgãos dentro dessas categorias também obedecendo a sublimites. Até 2019, o Poder Executivo compensou eventuais estouros dos demais poderes num cronograma de transição.
Segundo o teto de gastos, em 2026 o indexador seria revisto, podendo ser maior que a inflação. Até 2020, a correção era feita tendo como base o IPCA entre julho de dois anos antes e junho do ano anterior. Com a Emenda Constitucional dos Precatórios, promulgada em 2021, o índice passou a considerar a inflação cheia do ano anterior.
Entre janeiro e junho, vale a inflação efetiva do primeiro semestre. De julho a dezembro, vale uma projeção para o IPCA, valor que é compensado quando o índice cheio do ano anterior é divulgado, em janeiro do ano seguinte. Na ocasião, a mudança teve como objetivo liberar R$ 64,9 bilhões no Orçamento de 2022, ano eleitoral.
Diferentemente de outros países, o teto de gastos brasileiro não tem válvulas de escape como exclusão de investimentos (obras públicas e compra de equipamentos) e gastos sociais da regra. Outra possibilidade de escape é a suspensão da regra em momentos de baixo crescimento da economia, como ocorre no Peru.
No país vizinho, país que adota o teto de gastos desde 1999, a despesa não é simplesmente corrigida pela inflação. Os gastos podem ter crescimento real (acima da inflação) de 2% nos primeiros anos e de 4% a partir de 2004.
Emenda Constitucional da Transição
Sem válvulas de escape no Brasil, a Constituição foi modificada várias vezes desde 2019 para permitir furos no teto de gastos, envolvendo R$ 828,41 bilhões fora do limite. Desse total, a maior parte correspondeu ao Orçamento de Guerra para enfrentar a pandemia de covid-19 em 2020. Foram R$ 507,9 bilhões, segundo cálculos do economista Bráulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre).
Com a liberação de R$ 108,46 bilhões pela Emenda Constitucional dos Precatórios e de mais R$ 41,2 bilhões com a Emenda Constitucional que elevou o Auxílio Brasil para R$ 600 e criou auxílios para taxistas e caminhoneiros, o teto de gastos estouraria em 2023. Para evitar a paralisia do Orçamento deste ano, o governo eleito articulou a aprovação da Emenda Constitucional da Transição.
Promulgada em dezembro do ano passado, a Emenda Constitucional da Transição excluiu até R$ 168 bilhões do teto de gastos em 2023. Desse total, R$ 145 bilhões correspondem ao novo Bolsa Família com valor mínimo de R$ 600, e até R$ 23 bilhões poderão ser gastos em investimentos caso haja excesso de arrecadação.
Em troca da criação de mais um furo no teto de gastos. O texto, no entanto, estabeleceu a obrigatoriedade de o governo enviar – até agosto deste ano – um projeto de lei complementar com um novo arcabouço fiscal ao Congresso. Para permitir que o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 seja enviado até 15 de abril, data estabelecida pela legislação, dentro do novo arcabouço, o governo decidiu antecipar a divulgação das novas regras.
Novo marco fiscal
Apresentado em 30 de março, o novo arcabouço fiscal combina regras de resultado primário (resultado das contas do governo sem os juros da dívida pública) e de controle de gastos. As despesas do governo poderão crescer entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior em valores reais (corrigidos pela inflação).
Dentro dessa banda de 0,6% e 2,5%, os gastos poderão crescer até 70% da variação da receita do ano anterior. Segundo o Tesouro Nacional, o limite considerará a receita líquida, quando são descontados das receitas da União os repasses obrigatórios a estados e municípios.
Embora as despesas estejam submetidas a um limite de crescimento, existem diferenças marcantes em relação ao atual teto de gastos. Primeiramente, os gastos estão atrelados às receitas, o que cria um caráter pró-cíclico para o novo marco fiscal, em que as despesas crescem mais quando o governo arrecada mais e caem quando a arrecadação recua. No Brasil, o teto de gastos é contracíclico, limitando os gastos quando a arrecadação aumenta e, como não tem válvulas de escape, é pró-cíclico em momentos de recessão, porque os gastos também diminuem quando a economia se contrai.
A segunda diferença diz respeito ao crescimento. Com o teto de gastos, as despesas não podiam crescer acima da inflação. Pelo futuro arcabouço fiscal, os gastos sempre crescerão mais que a inflação. Em momentos de recessão ou de baixo crescimento, crescerão menos, mas, ainda assim, acima do IPCA.
Deixe um comentário