08/10/2024 - Edição 550

Poder

Em comício na ONU, Bolsonaro mente sobre pandemia, ambiente e corrupção

Uso eleitoral do discurso nas Nações Unidas gerou indignação entre diplomatas estrangeiros

Publicado em 21/09/2022 10:23 - Leonardo Sakamoto, Jamil Chade e Josias de Souza (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Como esperado, Jair Bolsonaro usou o seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, na manhã de terça (20), para fazer um comício de luxo voltado ao eleitorado brasileiro. Abandonou o tom mais radical de suas outras três participações no evento, mas não as mentiras, pintando uma realidade paralela.

Um discurso de chefe de Estado visto como pária, como é o caso de Bolsonaro, nunca atrai muita atenção do mundo. Nesses casos, o púlpito da Assembleia Geral serve para o político se cacifar junto ao público interno de seu país, uma vez que a imprensa está com os olhos voltados para o momento.

Mas, desta vez, sua participação tornou-se ainda mais irrelevante por conta de o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que historicamente discursa logo a seguir do Brasil, ter alterado sua participação para a quarta – o que ajudou a esvaziar a audiência.

Bolsonaro iniciou a sua fala já com uma mentira ao afirmar que seu “governo não poupou esforços para salvar vidas e preservar empregos” durante a pandemia, ignorando que ele demorou para comprar vacinas oferecidas pela Pfizer, combateu medidas de distanciamento social e menosprezou a vida humana.

Para pegar apenas um das dezenas de exemplos, em março de 2021, em um comício em São Simão (GO), ele ironizou as famílias e amigos que perderam pessoas para a doença: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”. Sus imitação de pessoas sufocando sem ar por conta da covid-19 ficaram tristemente antológicas.

Por mais que ele tenha discursado que o Brasil preserva a Amazônia, sugerindo que a imprensa brasileira e a internacional mentem quando relatam a devastação da região, dados do Imazon, divulgados na semana passada, apontam que, entre janeiro e agosto deste ano, 7.943 quilômetros quadrados de floresta foram derrubados, a pior devastação para o período dos últimos 15 anos.

Uma das forças que incentiva essa destruição, no momento, é exatamente o temor de aliados do presidente de que, com sua saída do governo, a fiscalização ambiental volte a se fortalecer, a lei volte a ser cumprida e a boiada pare de passar.

Em um evento como a Assembleia Geral, também pesa em desfavor de Bolsonaro o fato de que ele já é visto como vilão ambiental global por conta do fomento do desmatamento e das queimadas na Amazônia. Afinal, fotos de satélite com nuvens de fuligem e imagens de corpos de jornalistas e de ativistas assassinados ao proteger a floresta não mentem.

Jair disse que a “corrupção sistêmica” foi “extirpada” no país e que o responsável por escândalos passados [referindo-se a Lula] foi condenado em três instâncias. Para tentar se imunizar de críticas, o presidente utilizou o termo “sistêmico” que se contrapõe ao “pontual”, mas essa discussão não cabe aqui. Afinal, os pastores que cobraram propina em ouro para dar acesso ao Ministério da Educação e os coronéis que cobraram propina para fechar contratos de compra de vacina contra a covid-19 no Ministério da Saúde não entendem semântica.

Sem contar que ele dá essa declaração em meio a um escândalo, revelado pelo UOL, que mostrou que ele e seu clã compraram 51 imóveis usando dinheiro vivo.

Bradou que a inflação está em baixa. Depende de qual inflação estamos falando. O IBGE divulgou que o Brasil teve deflação de 0,36% em agosto, porém os alimentos continuaram subindo, registrando 0,24% de alta. Em julho, também houve deflação, mas a comida ficou 1,3% mais cara. Por exemplo, no mês passado, o leite longa vida caiu 1,78%, mas ainda acumula alta de 60,81% nos últimos 12 meses. Tanto que, para muitas famílias virou produto de luxo, sendo trocado por soro de leite ou água.

E é exatamente a persistência dessa inflação alta dos alimentos que tem afugentado os eleitores que ganham até dois salários mínimos de perto do presidente.

Ele também afirmou que liberou o auxílio emergencial para proteger a renda das famílias, relatando que foram 68 milhões de famílias beneficiadas. Na verdade, o Congresso Nacional é que garantiu que o valor fosse de R$ 600, em 2020. Se dependesse de seu governo, seriam pagos R$ 200. Mesmo assim, ele suspendeu o benefício entre 31 de dezembro de 2020 e o início de abril de 2021 para tentar empurrar os trabalhadores de volta às ruas. Naquele momento, as mortes escalavam para 4 mil por dia.

Bolsonaro contou aos seus pares na ONU que fez investimentos em ciência e tecnologia, apesar de ter cortado receitas das universidades e de bolsas de pesquisa, deixando mestrandos e doutorandos em desespero.

Colocou-se como defensor da liberdade de expressão e disse que repudia a perseguição religiosa, mas focou a questão nos cristãos, ignorando o que acontece em território brasileiro.

“Quero aqui anunciar que o Brasil abre suas portas para acolher os padres e freiras católicos que tem sofrido cruel perseguição do regime ditatorial da Nicarágua. O Brasil repudia a perseguição religiosa em qualquer lugar do mundo”, afirmou. Mas não precisava ter ido tão longe. No Brasil, pessoas de religiões de matriz africana vem sendo perseguidas por denominações religiosas evangélicas no Brasil sem que recebam uma palavra de conforto do presidente. Talvez pelo fato de que ele conta com o apoio desse grupo.

Gastou tempo tentando convencer de que “gosta de mulheres”, para usar uma expressão da própria Michelle Bolsonaro – citada por ele, aliás, como exemplo de atuação no voluntariado. Repetiu que aprovou 70 normais legais em prol das mulheres.

Contudo, pesquisa Ipec, divulgada na segunda (19), aponta que apesar dos esforços da primeira-dama para suavizar a imagem do marido, a vantagem de Lula para ele entre esse grupo subiu de 19 para 23 pontos, entre 5 de setembro e ontem, passando para 50% a 27%.

“Combatemos a violência contra as mulheres com todo o rigor”, disse o presidente acusado de ser misógino por ataques a mulheres jornalistas durante todo o seu mandato. Aproveitou a deixar para criticar o que chama de “ideologia de gênero” e o direito ao aborto.

E, claro, chamou os megacomícios eleitorais de 7 de Setembro de “maior demonstração cívica da história do país”, apesar de ter sequestrado o Bicentenário da Independência para defender que adversários fossem “extirpados” da vida pública. Horas depois dos comícios, vale lembrar, um bolsonarista matou um petista em Confresa (MT) após um debate de cunho político.

Depois do teatro da ONU, Bolsonaro foi ser ‘imbrochável’ numa churrascaria

Encerrado o discurso na ONU, deu as costas para a Assembleia-Geral, bateu em retirada e foi ser Bolsonaro numa churrascaria brasileira em Manhattan.

Recebido como astro pop por cerca de duas centenas de pessoas, Bolsonaro subiu numa cadeira como vereador que escala o caixote em praça pública. Ou como presidente que confunde sacada de embaixada londrina com palanque. Sob ovação e gritos de “mito”, Bolsonaro declarou-se “imorrível”, pois sobreviveu à facada de 2018; e “imbrochável”, pois resiste às provações do trono de presidente.

Esse Bolsonaro genuíno, puro em sua desqualificação, repetiu que não errou em nenhuma das declarações que vez durante a pandemia. Referiu-se ao Brasil como “terra prometida”. O leite e o mel ainda não escorreram nessa Canaã de Bolsonaro. Ao contrário, o país está de volta ao mapa da fome. Mas o capitão considera-se reeleito.

Antes de deixar o hotel, a caminho da ONU, ofendeu-se com uma pergunta sobre o favoritismo de Lula. “Se você acredita em pesquisas, não vou falar contigo.” Perguntou-se a Bolsonaro se deixará o cargo caso perca as eleições. E ele: “Não vou falar em hipóteses. Vamos ganhar no primeiro turno.” O resultado da corrida presidencial depende basicamente da profundidade com que o eleitor olha para o país.

Se o eleitorado olhasse com meio centímetro, a mesma profundidade dos discursos de Bolsonaro, a reeleição estaria assegurada. O problema é que a maioria pobre que mantém o favoritismo de Lula mora no abismo. Esse tipo de eleitor não está interessado nos vexames que o presidente dá no exterior. Procura algo que Bolsonaro não foi capaz de prover em quatro anos: esperança.

Indignação entre estrangeiros

Epígrafe de uma diplomacia que um dia foi respeitada, o discurso de Bolsonaro na ONU chocou os governos estrangeiros por ter transformado a tribuna em um palanque eleitoral. Mesmo considerado como “mais moderado” nos ataques contra a comunidade internacional, observadores internacionais deixaram claro que Bolsonaro foi o retrato de um país “apequenado” no mundo, que não atua como protagonista e que perdeu seu lugar de porta-voz dos países em desenvolvimento.

Depois de uma passagem desastrada por Londres para o funeral da monarca britânica, agora foi a vez de a tribuna das Nações Unidas ser transformada em parte da campanha.

Em sua fala, a lista de supostos feitos de seu governo no plano doméstico foi recebida com incompreensão por diplomatas estrangeiros que estavam na sala na ONU, além de questionamentos sobre a transferência de brigas partidárias domésticas ao palco internacional.

Mas também chamou a atenção a omissão a qualquer referência aos quase 700 mil mortos na pandemia, às queimadas e desmatamento recorde, à destruição dos mecanismos de direitos humanos e seus ataques contra a democracia. Também foi amplamente comentada sua decisão de atacar a imprensa nacional e estrangeira, no lugar de oferecer propostas concretas sobre como iria lidar com o desmatamento.

“Teu presidente não entendeu onde está, quem ele representa e o cargo que ocupa”, comentou um embaixador experiente, em uma mensagem à reportagem enquanto Bolsonaro ainda falava.

“Ele (Bolsonaro) mente e acha que nós somos seus apoiadores?”, ironizou um diplomata da América do Norte.

Ao destacar o compromisso com a imunização diante da pandemia, não faltaram comentários por parte de agentes ligados às instituições da OMS (Organização Mundial da Saúde). Na entidade, os ataques de Bolsonaro contra a vacina contra a covid-19 foram considerados como “profundamente desgastantes” para a estratégia que se desenhava para vencer a pandemia.

As repetidas referências aos cristãos, inclusive com uma frase também usada por líderes fascistas no passado, foram consideradas como sinais claros de que o presidente não falava ao mundo. Mas aos seus eleitores.

Para negociadores estrangeiros, a relativa moderação de Bolsonaro —evitando atacar a comunidade internacional como fez nos anos anteriores— não convence para desfazer uma imagem que seu discurso foi “paroquial”.

“Poucos hoje prestam atenção às suas [de Bolsonaro] propostas. Se não fosse o primeiro a falar, dificilmente o mundo estaria escutando o que ele tem a dizer”, afirmou um diplomata europeu.

Na Europa, diversos governos já orientaram suas chancelarias a manter o mínimo de contato possível com o bolsonarismo e adiar qualquer projeto mais substancial.

Numa conversa com a reportagem, um diplomata português admitiu que, já há algum tempo, Lisboa apenas mantém a relação com Brasília por entender que não há como promover uma ruptura na relação entre os dois países.

Entre as entidades brasileiras, as críticas também foram duras. Para o Observatório do Clima, “Bolsonaro usou seus cerca de 20 minutos de fala da ONU para fazer palanque, tentando energizar suas bases descrevendo um Brasil de faz-de-conta”.

“No mundo real, temos 33 milhões de famintos, 11% das mortes por Covid num país que tem 3% da população mundial e a pior crise socioambiental no país desde a redemocratização”, disse. “Embora governos passados tenham registrado taxas de desmatamento maiores na Amazônia, o regime Bolsonaro foi o único que não apenas não fez nada a respeito como estimulou ativamente o crime ambiental e o massacre de indígenas. Daí ter sido o primeiro governante brasileiro desde o início das medições por satélite a ver o desmatamento subir três vezes seguidas num mesmo mandato”, destacam.

“No Brasil real, as invasões de terras indígenas triplicaram, o número de indígenas assassinados é o maior desde 2003, o desmatamento na Amazônia cresceu 75% em relação à última década e o número de queimadas até meados de setembro de 2022 já é maior do que o de todo o ano de 2021. No Brasil real, investimentos e acordos internacionais empacaram devido ao desmonte da governança ambiental e o país tornou-se um pária em fóruns nos quais era protagonista, como as negociações internacionais de clima”, insistem.

“É desse país que a comunidade internacional se despede nesta terça-feira, com a esperança de que a partir de 2023 o Brasil tenha um novo governo, disposto a cuidar da própria população e a reinserir o país no mundo”, completa a entidade.

“A única instância internacional que deveria receber Jair Bolsonaro a partir de agora é o Tribunal de Haia, pela sua gestão criminosa da pandemia e pela incitação ao genocídio indígena”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Clima deve ser prioridade de todos os governos

Antes de Bolsonaro tomar a palavra, foi o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, quem discursou e mandou recados duros a líderes que têm questionado os pilares das Nações Unidas, em especialmente o clima. “Nosso planeta está queimando”, disse. Para ele, o futuro da humanidade está em jogo.

Segundo Guterres, o mundo trava uma “guerra de suicídio” e a questão climática deve ser “a prioridade de todos os governos”. Na avaliação do secretário-geral, os verões mais quentes de hoje podem ser os mais frescos do futuro.

O chefe da ONU fez um apelo para que os governos do G20 imponham impostos sobre a indústria do petróleo e que tais recursos sejam usados para ajudar os países mais pobres a realizar a transição.

Outra denúncia se refere ao comportamento de líderes. Segundo ele, o “ódio e a desinformação estão proliferando, principalmente contra mulheres e grupos vulneráveis”. Para ele, o mundo vive uma “disfunção colossal” e não está preparado para lidar com tais cenários.

“Mundo paralisado e em perigo. Não podemos continuar assim”, alertou.


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