Poder
Publicado em 21/08/2020 12:00 -
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Na ausência de Celso de Mello, que requereu licença médica, o ministro Marco Aurélio Mello responderá pela relatoria do inquérito em que Jair Bolsonaro é investigado no Supremo por tentar intervir politicamente na Polícia Federal. "Praticarei apenas atos visando evitar o perecimento de algum procedimento", disse o ministro ao jornalista Josias de Souza.
Uma das pendências é a definição sobre a forma como a PF interrogará o presidente da República —se pessoalmente ou por escrito. "No caso da audição do presidente, não há risco de perecimento", afirmou Marco Aurélio.
E se a PF solicitar uma definição? "Se a Polícia Federal perguntar, digo que deve aguardar a volta do relator", repisou o ministro. "Em substituição, só praticarei atos urgentes."
Deve-se ao regimento interno do Supremo a transferência momentânea dos autos do inquérito. Prevê que, enquanto durar a licença do relator, assume a função o ministro mais antigo da Corte. Depois do decano, o ministro mais longevo é Marco Aurélio.
A aposentadoria de Celso de Mello ocorrerá em 1º de novembro, quando ele completa 75 anos. Pela Constituição, cabe ao presidente da República indicar o substituto, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado.
Bolsonaro já manifestou publicamente a intenção de indicar para a poltrona do Supremo o "terrivelmente evangélico" ministro da Justiça, André Mendonça. Ele não deve herdar o processo estrelado por Bolsonaro.
Consumada a aposentadoria, "tem que redistribuir o processo", esclareceu Marco Aurélio. "Ação penal, habeas corpus e inquéritos não ficam aguardando a chegada do substituto. A redistribuição se dará por sorteio."
Tipo Maradona
O pedido de licença de Celso de Mello coloca Gilmar Mendes numa situação semelhante à de Diego Maradona na Copa de 1986, durante o jogo contra a Inglaterra. Aos seis minutos do segundo tempo, o craque argentino subiu na pequena área, disputou uma bola com o goleiro e marcou. Maradona não cabeceou. Ele atribuiria o gol mais tarde à "mão de Deus". Gilmar marcará um gol contra a Lava Jato e a favor de Lula se aproveitar a ausência de Celso de Mello para levar a julgamento na Segunda Turma do Supremo o pedido de suspeição de Sergio Moro no caso do tríplex. Mas será um gol de mão.
A ação contra Moro começou a ser julgada em 4 de dezembro de 2018. Nesse dia, a defesa de Lula pediu no plenário da Segunda Turma que o julgamento fosse adiado. Fez isso porque a perspectiva na época era de vitória de Moro. Já votaram contra a suspeição do ex-juiz o relator da Lava Jato Edson Fachin e Cármen Lúcia. Estava subentendido que Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski beneficiariam Lula.
A bola rolaria para os pés do decano Celso de Mello, a quem caberia bater o pênalti decisivo. Mas Gilmar Mendes pediu vista do processo depois que a manobra do adiamento fracassou. Era dezembro de 2018. O ministro disse que se esforçaria para devolver os autos para julgamento ainda naquele ano. Já se passaram quase dois anos. E nada. Se o processo for levado à bancada sem a presença a de Celso de Mello, a disputa que opõe Lula e Moro ganhará a aparência de jogo jogado.
O placar será de 2 a 2. Fachin e Cármen a favor de Moro; Gilmar e Lewandowski a favor de Lula. Em caso de empate, Lula levaria a melhor. Significa dizer que a sentença do caso do tríplex, já confirmada em três instâncias, seria revogada. E Lula, que já se livrou da cadeia, ficaria mais próximo do objetivo de lavar a sua ficha suja, habilitando-se para a sucessão presidencial de 2022. Esse assunto é muito sério para ser decidido com um gol de mão. Depois de ter empurrado a encrenca com a barriga por tanto tempo, não parece razoável que Gilmar Mendes queira dar uma de Maradona a essa altura do campeonato.
Wasseff encosta Bolsonaro em enredo com JBS
Frederick Wassef costumava se gabar de sua condição de advogado dos Bolsonaro. Hoje, ostenta aparência de lobista. Num dia, faz à família presidencial o favor de esconder Fabrício Queiroz em imóvel de sua propriedade. Noutro, pede ao presidente que lhe faça a gentileza de abrir portas na Procuradoria-Geral da República, para que defendesse os interesses de uma logomarca tóxica: JBS.
Tanta desenvoltura arrastou o nome de Bolsonaro para dentro de uma notícia da revista Crusoé. Nela, o ex-advogado do presidente surge como feliz beneficiário de repasses de R$ 9 milhões da JBS entre 2015 e 2020. No final de 2019, Wasseff pediu a Bolsonaro que o recomendasse ao procurador-geral Augusto Aras. Queria ser recebido na PGR para falar sobre a delação dos executivos da JBS, que fazia água. O que mais incomoda no caso é a suspeita de que Bolsonaro atendeu ao pedido do doutor.
Wasseff foi efetivamente recebido pelo subprocurador-geral da República José Adonis Callou. Então coordenador dos processos da Lava Jato na PGR, Callou contou ao Estadão que Wasseff lhe foi encaminhado pelo gabinete de Aras. A conversa teria sido rápida, pois o doutor não exibia procuração da JBS. "Ele disse que apresentaria, mas não retornou", disse o procurador.
Aras determinou a abertura de investigação preliminar para apurar a motivação dos repasses milionários da JBS para Wasseff. Requisitou informações ao Ministério Público do Rio de Janeiro, que colecionou os dados no inquérito sobre Fabrício Queiroz, o operador da rachadinha do primogênito Flávio Bolsonaro, antigo cliente de Wasseff.
"Eventual irregularidade poderá reforçar os indícios de omissão nos acordos de colaboração premiada dos executivos da companhia", escreveu em nota oficial a assessoria de Aras. Referia-se às delações dos irmãos Joesley e Wesley Batista, sob risco de anulação no Supremo Tribunal Federal.
Nas repartições públicas, a honestidade marca hora, enfrenta fila e toma chá de cadeira na antessala. A corrupção chega recomendada por um amigo influente, sobe pelo elevador privativo e entra sem bater.
As investigações ainda não chegaram ao fim. Entre negativas e admissões, os protagonistas dizem que não há nada de suspeito no enredo. Porém, nada é uma palavra que às vezes ultrapassa tudo.
A cena é malcheirosa. Natural. Bolsonaro sabia dos riscos que corria quando se achegou a Wasseff. Mal comparando, quem resolve abraçar um gambá precisa saber que não sairá perfumado.
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