07/10/2024 - Edição 550

Mato Grosso do Sul

No coração do agro, LGBTQIA+ enfrentam violência e discriminação

LGBTQIA+ Guarani Kaiowá em MS pedem fortalecimento de rede de proteção

Publicado em 28/06/2024 9:01 - Beatriz Vitória e Paula Bianchi (Repórter Brasil), Léo Rodrigues (Agência Brasil)

Divulgação Foto: Matheus Carvalho/Secretaria de Estado da Cidadania do MS

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“As pessoas realmente compraram essa ideia de que professores estão transformando os estudantes em LGBTs ou indo contra os valores da família”, diz a socióloga e professora Daniele Rehling, demitida de uma escola particular de Campo Grande (MS), junto com outros dois colegas, acusados de promover a chamada “ideologia de gênero”.

Rehling conta que eles sofreram perseguição na escola por debaterem questões de gênero em sala de aula e defenderem direitos de alunos trans, como o uso do nome social e do banheiro de acordo com a identidade de gênero. Segundo a professora, que dava aula para o Ensino Médio, mesmo o uso de roupas coloridas era visto como um problema.

O relato de Rehling não é um caso isolado, como mostra relatório do Projeto Pajubá que analisou a situação dos coletivos LGBTQIA+ no Brasil. Idealizado pelas organizações Abong, Antra e ABGLT, o estudo aponta que, no Centro-Oeste, há uma rotina de discriminação de pessoas LGBTQIA+, especialmente em áreas rurais.

Dados do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, confirmam essa situação de risco. Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Goiás foram as unidades federativas que mais receberam denúncias de violações de direitos humanos contra LGBTQIA+ no primeiro trimestre de 2024, proporcionalmente ao número de habitantes.

Igor Marangon, secretário de organização do coletivo LGBTQIA+ de Sinop, no interior de Mato Grosso, diz que é comum o coletivo receber relatos de preconceito no ambiente de trabalho. Segundo ele, há uma cultura muito forte de “valorização da heteronormatividade”, sobretudo em locais onde o agronegócio é muito forte, como a cidade, que se autointitula “capital do Nortão do Mato Grosso”, região que mais produz soja no país.

“Recentemente, um rapaz entregou currículo em uma empresa de agronegócio, mas não foi contratado por ser, segundo as palavras [de um funcionário] da empresa, ‘muito afeminado’”, exemplifica. O agro pode ser tudo, menos diverso.

Outro trabalhador LGBTQIA+ do agronegócio na região de Sinop denunciou ao coletivo que recebeu diversos ataques homofóbicos, após um perfil do Instagram vazar um vídeo seu, inicialmente enviado a um grupo privado do WhatsApp, no qual ele mostra sua rotina de trabalho em uma fazenda.

Uma professora do município de Juína (MT) também relatou ao coletivo ter sido demitida após levar uma palestra sobre gênero para a escola, em junho do ano passado.

“A falta de políticas públicas inclusivas e a resistência de setores da sociedade em reconhecer e combater a discriminação contribuem para a perpetuação da violência”, diz trecho do relatório.

Projetos de lei tentam limitar ainda mais os direitos

A rotina de discriminação vivida por essas populações pode se agravar ainda mais. Um levantamento realizado pela Repórter Brasil nos sites das Assembleias Legislativas do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás com os termos “gênero”, “identidade de gênero” e “LGBT” encontrou ao menos 22 projetos de leis que buscam restringir direitos relacionados à população LGBTQIA+ [confira aqui a lista completa].

Entre eles, está o projeto de lei 538/2023 do deputado do PSD de Goiás Cairo Salim, que proíbe a participação de crianças e adolescentes menores de 18 anos nas paradas de orgulho LGBTQIAPN+ no estado, com a justificativa de que esse tipo de evento explora “erotização infantil, independentemente da presença dos pais ou responsáveis legais”.

Já no Mato Grosso, o projeto de lei 99/2023, de autoria do deputado Thiago Silva (MDB), proíbe a “ideologia de gêneros” nas escolas, argumentando que “o Estado não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade desmedida sem prévia autorização de seus pais e responsáveis”, sem definir, porém, o que seria essa ideologia em si.

A falta de políticas públicas e os desafios na captação de recursos para manter organizações voltadas a essa comunidade são outros problemas recorrentes identificados pela pesquisa do Projeto Pajubá.

Roberta Fernandes, presidente da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros de Goiás (Astral), destaca que a articulação com movimentos feministas é essencial para a sobrevivência da associação, facilitando a captação de recursos através de organizações focadas em mulheres de todos os gêneros e sexualidades.

Segundo ela, apesar de o estado de Goiás ter pelo menos 30 coletivos LGBTQIA+, apenas a Astral e outra organização possuem recursos para manter uma sede fixa.

“Tem que se apoiar em movimento feminista para que a associação de travestis e transexuais tenha um lugar para atendimento. Porque se você pegar a palavra travestis e transexuais, os políticos não atendem”, explica.

Foto: Gustavo Glória – MDHC

LGBTQIA+ Guarani Kaiowá pedem fortalecimento de rede de proteção

O 1º Encontro LGBTQIA+ Indígena Guarani Kaiowá, realizado no último fim de semana, indicou cinco encaminhamentos para enfrentar as violações de direitos contra essa população. Eles envolvem a criação de oficinas de diálogo com os jovens nas próprias comunidades, a formação de agentes de saúde e de professores que atuam dentro das aldeias, o fortalecimento da rede de proteção abrangendo diferentes órgãos e instituições públicas, a elaboração de materiais informativos para distribuição nas aldeias e a construção de uma casa de acolhimento.

O encontro, que ocorreu na cidade de Sidrolândia, em Mato Grosso do Sul, buscou fortalecer a identidade e a auto-organização da etnia, promover a visibilidade e a valorização da diversidade sexual e de gênero dentro das aldeias, construir estratégias de autoproteção contra a homofobia e a transfobia e discutir políticas públicas para garantir de direitos dessa população. Nesta sexta-feira (28), comemora-se o Dia Internacional do Orgulho LGBT.

O balanço é positivo na avaliação de Alessandro Santos Mariano, chefe de gabinete da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).

“Foi um espaço de muita escuta sobre as violações de direitos e também um espaço de formação dos sujeitos em relação aos seus direitos. O encontro esteve também muito conectado à cultura e organização dos indígenas. Todas as mesas começavam com as falas dos indígenas”, disse, em entrevista à Agência Brasil, na qual abordou os resultados do evento. Ele acrescentou os momentos ligados à espiritualidade das comunidades, na abertura e no encerramento dos trabalhos.

A organização do encontro foi uma demanda que partiu da população Guarani Kaiowá, etnia que se concentra principalmente em Mato Grosso do Sul. Os indígenas, alinhados à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), conseguiram viabilizar o encontro em articulação com o MDHC, com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e com o coletivo Distrito Drag.

Igualdade

“O evento se configura como um marco na luta pela igualdade e pela visibilidade dos indígenas LGBTQIA+ Guarani Kaiowá, através do diálogo intercultural, da construção de redes de apoio e da incidência política, buscando garantir os direitos e a dignidade da comunidade. A união e a mobilização social são essenciais para construir um futuro mais justo e inclusivo para todos os povos indígenas”, avaliou a Apib em nota divulgada em seu portal. O texto aponta o encontro como um espaço seguro para diálogo e troca de experiências, com vistas à construção de estratégias de autoproteção contra discriminação.

Durante o encontro, o MDHC coordenou mesas para discutir questões relacionadas ao direito das populações LGBTQIA+ no Brasil, como o casamento homoafetivo e o nome social. Também promoveu debates em torno da compreensão em relação à identidade de gênero e orientação sexual. A pasta realizou ainda uma apresentação do serviço do Disque 100, responsável pelo recebimento de denúncias envolvendo violações de direitos humanos.

Outros órgãos do poder público também foram envolvidos. O Ministério da Saúde realizou oficinas sobre as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A Defensoria Pública da União (DPU) abordou a questão das violências e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) promoveu conversas sobre saúde mental.

Houve ainda diferentes espaços de escuta, nos quais os indígenas puderam apresentar queixas e relatos envolvendo todos esses temas. Alessandro indica que o direito ao território foi um tema bastante abordado pelos participantes. “Uma das questões que a gente pode apontar a partir desse encontro é a necessidade dessa população ter o seu direito de ser LGBT na sua comunidade”, afirmou.

Ele lembra que, nos últimos três anos, houve três homicídios de indígenas LGBTQIA+ em aldeias guarani kaiowá ou próximas a elas. De acordo com Alessandro, como são crimes ainda não solucionados, não se sabe se os autores pertencem à comunidade ou se são invasores. Ele disse também que, além dos assassinatos, há outros casos registrados de violência contra indígenas LGBTQIA+ e os alvos são majoritariamente jovens.

“Possuem 15, 17, 18 anos. Como não se encaixam naquilo que é tido como padrão, pois têm uma característica de expressão de gênero que é diversa e que se manifesta por exemplo no cabelo, nos gostos, no jeito de se vestir, se tornam vítimas de violência. No encontro, a gente pôde escutar isso. Há uma dificuldade da família e da comunidade em entender e também quando saem da aldeia são alvos de violência na cidade, nas escolas e em outros espaços”, especificou.]

Encaminhamentos

De acordo com Alessandro, o MDHC está comprometido em promover articulações com outros órgãos e instituições para levar os cinco encaminhamentos adiante. Ele explicou, por exemplo, que o fortalecimento da rede de proteção precisa envolver o Ministério Público e estruturas municipais, as quais devem ser capazes de dar atenção às denúncias e acompanhar os casos.

Em relação à casa de acolhimento, Alessandro disse que a ideia é que ela possa receber, abrigar e dar suporte às pessoas em situação de vulnerabilidade, que inclui LGBTQIA+ que saíram de casa ou que sofrem algum tipo de perseguição na aldeia.

Ele avaliou, porém, ser preciso uma união de esforços que permita não apenas tirar o projeto do papel, mas também pensar a gestão do espaço. Em sua visão, uma estrutura como essa deveria contar com a participação, por exemplo, do Ministério da Saúde, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do governo estadual.

O encontro também marcou a inauguração do programa Bem Viver+, criado pelo MDHC para enfrentar a violência e promover os direitos das pessoas LGBTQIA+ nos territórios do campo, das águas e das florestas. “Estamos iniciando nesse ano com foco nas populações indígenas. O objetivo é dar sequência a um processo de formação”, contou Alessandro.

Está prevista para setembro a realização de um encontro com indígenas LGBTQIA+ em Salvador. Todas as ações no âmbito do programa são planejadas em diálogo com as comunidades e entidades indígenas e com outras estruturas do poder público.


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