11/10/2024 - Edição 550

Entrevista

‘Vemos a desconstrução dos direitos humanos de forma assustadora’

Publicado em 09/04/2019 12:00 -

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“A naturalização da barbárie na fala dele é uma inversão tão profunda de valores. Como você contra-argumenta com alguém que defende que uma pessoa que morreu com a intervenção da polícia não é digna de ser chamada de pessoa?”. O desabafo é da advogada, pesquisadora da FGV-SP, assessora de Relações Internacionais da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e integrante do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Luciana Zaffalon, em entrevista após retornar de Viena, na Áustria, onde participou da 62ª edição da CND (Comissão de Drogas Narcóticas) da ONU.

No dia 19 de março, ela participava de um painel intitulado “Controle de drogas e militarização da segurança: reflexões sobre a experiência nas Américas”. No entanto, a repercussão do evento tomou outra proporção após a divulgação de um vídeo em que o coordenador-geral de Polícia de Repressão a Drogas e Facções Criminosas da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da PF, Elvis Secco, aparece constrangendo a pesquisadora que apresentava dados sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, especificamente sobre o aumento de 35% de pessoas mortas pela polícia durante o período. Ele a interrompe e diz: “Você está falando de pessoas, no geral. Para mim, a maioria são criminosos”.  O delegado ocupa o cargo desde janeiro deste ano, quando foi nomeado pelo secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Washington Leonardo Guanaes Bonini.

Na filmagem, Zaffalon ainda rebate o delegado afirmando que “se essas pessoas são consideradas criminosas, elas devem ser investigadas e julgadas”. Em resposta, Secco alegou que “no Rio de Janeiro, há muito mais pessoas criminosas contra a polícia do que pessoas inocentes”.  A postura, segundo ela, intimidatória, demonstra uma mudança na diplomacia brasileira.

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que respondeu que “os eventos relatados não dizem respeito a funcionários do Itamaraty” e que, no tocante à pasta, “os diplomatas expressam posições do governo brasileiro”. Já a Polícia Federal não retornou os contatos da reportagem.

O caso aconteceu dias depois do ex-deputado Jean Wyllys, que renunciou o mandato e deixou o país após receber ameaças de morte, participar de um evento semelhante em Genebra sobre autoritarismo e direitos humanos. Na ocasião, o ex-parlamentar falou sobre o primeiro mandato, em 2011, apontando que “Bolsonaro me insultava nas comissões e no plenário e iniciou uma campanha de destruição de minha reputação com fake news”.  A fala foi contestada pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, que estava na plateia, e que defendeu o governo, iniciando-se uma discussão. “O presidente Bolsonaro não fugiu do Brasil nem mesmo depois de uma tentativa real de tirar a vida dele”, em referência ao atentado à faca na campanha eleitoral em 2018.

Nesta entrevista, a pesquisadora aborda a conferência da ONU e também discute os efeitos da intervenção federal no Rio de Janeiro, que considera como “catastrófica” e um retorno dos militares ao centro do poder político, além do protagonismo de membros do judiciário em cargos do executivo – tema que abordou em sua tese de doutorado que se transformou em livro no final do ano passado: A Política da JustiçaBlindar As ElitesCriminalizar Os Pobres. O livro aborda o que ela chama de “processo de politização do sistema de Justiça paulista” ao analisar o impacto das relações entre Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública com o governo estadual e como elas têm afetado as decisões no campo da segurança pública e do sistema penitenciário. A pesquisa levou em conta o período das gestões do início de 2012 a junho de 2016.

 

Como funciona a CND e o que estava sendo discutido?

A ONU tem diversos segmentos que se dedicam a determinados temas. Assim como tem a do meio ambiente e a do desenvolvimento, a gente tem uma parte que olha para crimes e drogas e se organiza dentro desse escritório da ONU. Essa conferência, que acontece uma vez por ano, é um espaço dos estados membros da ONU onde têm vez e voz.  No entanto, a sociedade civil consegue se fazer presente como observador e com alguns espaços determinados de fala. O principal deles são os side events, ou seja, não fazem parte da programação oficial da CND, mas integram a agenda do evento e são espaços onde a sociedade civil pode organizar debates importantes. A Plataforma Brasileira de Política de Drogas tinha três side events que ela participou na CND deste ano que foram realizados com organizações latino americanas. Um deles a gente tratava sobre a militarização da segurança pública no contexto da América Latina e foi nesse side event que se deu o imprevisto da participação do integrante da comitiva do governo brasileiro na CND.

Como aconteceu?

Eu estava apresentando dados do Observatório da Intervenção, que é conduzido pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), um projeto super sério, que mostra que nos meses de intervenção no Rio de Janeiro, o aumento do número de vítimas da intervenção do estado foi de 35%. É um aumento muito expressivo de pessoas mortas pela polícia. Enquanto eu falava, tinha um slide atrás de mim mostrando algumas conclusões a respeito desse período e uma delas é da delicadeza da morte de crianças, de adolescentes, do menino de 14 anos morto nessas circunstâncias [Marcus Vinícius, de 14 anos, baleado pelas forças da intervenção federal, em junho de 2018]. Daí ele [delegado Elvis Secco] me interrompe se mostrando consternado com a apresentação dos dados como se fosse inadmissível apresentar os dados daquela forma. Ele usa o próprio cargo como razão suficiente para discordar do que eu estava apresentando e alega também ter os seus próprios dados, apesar de não ter apresentado nenhum, e questiona de maneira muito insistente o fato de eu ter usado o termo “pessoas” de maneira genérica. Independente da questão da forma que já era um absurdo em si, é muito inapropriado que uma postura dessa natureza aconteça num espaço como aquele. Eu tentei contra-argumentar dizendo “olha, ainda que fossem criminosos, para que sejam considerados criminosos, eles teriam que ser julgados e condenados, o que não aconteceu”. E não se conseguia fazer o diálogo, ele só insistia que eram criminosos. O que ele estava dizendo não se sustenta em nenhuma dimensão, porque ninguém perde a sua condição de pessoa e também por ele estar defendendo a execução sumária de pessoas pela polícia. Também me causa muita surpresa é que alguns minutos depois de ele ter tido a fala interrompida, surge uma nova figura na sala que não tinha acompanhado o side event pede a palavra, a mediadora explica que o tempo já tinha acabado. A pessoa insiste, a mediadora concede a palavra e essa pessoa se apresenta como integrante do governo brasileiro que trabalha na Senad (Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas) e começa a defender o pacote anticrime que o Moro tinha encaminhado para o Congresso naquela semana.

Como assim? Qual era o papel dos representantes do governo no evento?

O nome dela eu não sei, mas ela estava apresentada como integrante da delegação brasileira, porque lá cada crachá tem uma cor de acordo com seu papel, então o meu era amarelo porque integro a sociedade civil, o de governo é vermelho. Quem são as pessoas escaladas pelo o governo para estar lá, como são escolhidas, que papel elas vão desempenhar lá eu não tenho conhecimento de que esses dados sejam públicos. A gente não sabe se eles foram designados para uma missão nem o que eles estavam fazendo lá. O evento é aberto, qualquer um pode ir lá e eu acho bom que o governo brasileiro se faça presente, mas não para intimidar quem vai lá para apresentar dados. Não foi uma postura para a construção de diálogos, de confrontação de ideias, de questionamento metodológico, de apresentação de controvérsias. Foi um ato de cerceamento da possibilidade de se sentir à vontade de apresentar dados públicos sobre a intervenção militar. E isso se dá alguns dias depois do que aconteceu em Genebra, num evento semelhante, com o Jean Wyllys. Inclusive, as organizações que promoveram o side event são as mesmas que promoveram o evento em Genebra.

O que esses acontecimentos representam tendo em vista que o presidente Jair Bolsonaro já declarou, quando estava em campanha, que, se fosse eleito, tiraria o Brasil da ONU porque a instituição, segundo ele, “não serve para nada”?

Quando a gente tem, num período tão curto, dois momentos de enfrentamento do governo brasileiro em instâncias diplomáticas, me parece haver uma mudança de postura governamental. Em que termos ela foi deliberada, seria suposição minha dizer, mas a gente já nota essa mudança drástica de comportamento. O governo brasileiro jamais ocupou esses espaços de maneira não protocolar, de maneira agressiva ou intimidatória. Houve sempre um respeito àquele ambiente como um espaço de construção onde a crítica era tolerada. Se eu tenho a postura de alguém que estava lá que sofreu essa intimidação e isso me afeta diretamente, existe um outro elemento: eu, enquanto cidadã, vejo um representante do governo num evento da ONU defender execução sumária das pessoas. A naturalização da barbárie na fala dele é uma inversão tão profunda de valores. Como você contra-argumenta com alguém que defende que uma pessoa que morreu com a intervenção da polícia não é digna de ser chamada de pessoa? É de uma brutalidade, uma violência. E ele se colocava como se não fosse possível uma outra interpretação daquela realidade.

Ao que você atribui essa liberdade de proferir esse tipo de discurso?

Eu não consigo dizer se é despreparo, se é fruto de deliberação do Estado do tipo de papel a ser exercido nessas esferas, para deslegitimar esses espaços de maneira tão acintosa. E é mais difícil dizer qual das duas suposições é pior. Nós estamos encaminhando pessoas para esses espaços que não fazem a menor ideia do que está sendo feito lá e que o único elemento que agrega [para eles] é defender a barbárie, assim como o governo federal tem defendido? Isso basta? A barbárie é suficiente para defender o governo brasileiro hoje?

Como foi a reação das organizações de outros países que estavam no evento?

Há uma preocupação muito grande com o que acontece no Brasil. Existe um reconhecimento latinoamericano da importância da solidariedade das organizações de direitos humanos de todo o continente latinoamericano com o Brasil nesse momento. As pessoas que estavam na sala, a maioria de desses países, saíram muito assustados. A intimidação foi sentida não só por mim foi sentida por todo mundo que estava ali presente. Se tem uma coisa que eu considero positiva nessa intervenção do governo brasileiro [no evento] é o alerta que fica para os companheiros latinoamericanos do momento que a gente vivencia. Ali não era um espaço de construção do Estado, mas da sociedade civil de se colocar na linha frente. Foi construído um documento de reclamação formal às Nações Unidas pelo o que aconteceu, chamando a responsabilização do governo brasileiro para que se explique e que se exima de reproduzir ações como essa no futuro.

Por outro lado, como você vê a aproximação do governo brasileiro com os Estados Unidos e Israel?

Estamos tendo no mundo hoje uma desconstrução dos direitos humanos como linguagem que deve pautar a nossa construção democrática de maneira muito assustadora. Inclusive as eleições de Israel, que estão para acontecer, vão mostrar como o país vai se posicionar nesse cenário em que temos Trump e Bolsonaro como resultados de processos democráticos, mas que a gente passa a ter nossa democracia corrompida por processos democráticos. As nossas eleições nos conduziram a escolhas que não se pautaram pelos direitos humanos. Como a gente vai virar esse jogo, eu ainda não sei.

Entrando na questão da intervenção federal,  qual a sua avaliação do período?

Quando a gente olha para trás, no momento em que o Michel Temer anuncia que vai ter intervenção militar no Rio de Janeiro, colocando a segurança pública e a guerra às drogas como elementos da sua decisão, e a gente olha os números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio está longe de ser o estado mais violento do país. No entanto, é um estado de grande destaque, que sedia a principal emissora de televisão que a gente tem no país. O que acontece no Rio de Janeiro repercute muito mais.  É uma plataforma eleitoral muito propícia. Eu entendo o ato de intervenção no Rio de Janeiro não como pautado pela segurança pública, é um ato político que garante a volta dos militares ao centro do poder político. Desde o final da ditadura, a gente não tinha os militares no centro do poder político, a intervenção militar é o primeiro passo.  A gente tem a destituição do poder de um governo civil eleito democraticamente para que uma intervenção militar coloque na chefia das polícias, do serviço de inteligência, do sistema prisional, um militar.

Como assim?

Eu não entendo que a Constituição permitia que a intervenção fosse militar. A nossa constituição prevê a possibilidade de intervenção, mas não por um militar. Essa intervenção deveria ter sido civil. Se tira um governo eleito e se coloca um militar como interventor, isso me parece na contramão de políticas públicas de segurança pública. O modelo implementado na intervenção do RJ já me parece uma catástrofe tanto em termos democráticos quanto em política de segurança pública. De outro lado, os resultados são terríveis, é nesse período que se tem o aumento de 35% de pessoas mortas pela polícia, tem [o assassinato da vereadora] Marielle Franco nesse período, a gente continua tendo uma população amedrontada. Não houve nenhuma pauta séria de segurança pública ou de sistema prisional minimamente solucionada, a gente tem um gasto de recursos enorme que não havia sido distribuído para o RJ de antes. O RJ vinha de uma crise econômica super alta. O governo federal poderia muito bem ter tomado a decisão de antes repassar esses recursos e fomentar caminhos menos bélicos de solução desse conflito. Os índices de criminalidade não justificariam o nível de violência que se chegou e o grande problema é que a gente continua tendo uma política de segurança pública pautada no extermínio de pessoas, não na proteção da vida e na não na proteção dos direitos humanos. É um exemplo do que não se fazer.

Você acredita que a intervenção federal catapultou a eleição de Bolsonaro?

É difícil fazer essa correlação tão direta, mas me parece muito evidente, quando a gente olha o tempo das coisas, que a intervenção militar acontece pouco tempo depois quando fica claro que Temer não ia conseguir passar a reforma da previdência. A partir do momento que essa bandeira de campanha passa a não ser exequível, ele adota uma outra bandeira eleitoral na pauta da segurança pública, independente dos resultados práticos e da forma como isso afeta a vida das pessoas no Rio de Janeiro. E se é possível fazer a correlação direta ao protagonismo politico dos militares no poder, de causa e efeito, eu estaria sendo leviana de dizer sem trazer mais dados, mas factualmente é o primeiro momento que a gente volta a ter um militar para uma posição de destaque. Temporalmente, é ali que a gente tem o divisor de águas.

E quais são as consequência disso?

Hoje é difícil ver uma esfera de poder que não tenha os militares. É o primeiro passo de uma naturalização de que espaços institucionais do Estado brasileiro poderiam estar sob a tutela de miliares sem maiores problemas pós ditadura militar. A esfera militar não vem de nenhuma genealogia democrática que nos permita avaliar como positiva a sua apropriação do sistema de segurança pública. E aí estamos falando de mecanismos de transparência, de que maneiras as tomadas de decisão são hierarquizadas ou não são, quais são os valores que regem a construção de prioridades. São pilares muito simplórios da nossa construção civilizatória que ficam secundarizados quando damos passos nessa natureza. E como estamos falando de valores muito caros de sobrevivência humana, a gente está falando de vida ou morte, as escolhas do Estado em deixar viver ou morrer.

E como você vê o protagonismo de membros do Poder Judiciário no Poder Executivo, como Wilson Witzel?

A entrada do Witzel [ex-juiz federal, eleito governador do RJ] na chefia do Executivo é mais um problema grande que temos diante de nós. Além de ter um governo que desrespeita os direitos humanos, como foi a plataforma eleitoral do Witzel, o fato de ele ser oriundo do poder judiciário nos traz outra questão: como a gente faz um enfrentamento contando com uma eventual solução de conflito via Poder Judiciário, que tem um espírito de corpo tão grande, e vai ter um dos seus a frente do governo do estado? Me preocupa muito o que vem pela frente. A gente deixa de ter freios e contrapesos para barrar uma violência estatal.

Na sua tese, que virou livro, você aborda essa junção de poderes em São Paulo. Como se dá isso?

São Paulo tem um histórico na Secretaria de Segurança Pública há muito tempo sob coordenação do Ministério Público, foram sete secretários seguidos, um deles Alexandre de Moraes [hoje ministro do STF, mas que deixou a SSP para ser Ministro da Justiça do governo Temer. O cargo foi assumido pelo secretário-adjunto, Mágino Alves Barbosa Filho, em 2015 até 2018, que também foi procurador do MP]. É interessante quando a gente puxa o fio narrativo da história: quando se começa a ter essa confusão de papéis? Quando passa a ter esse imbricamento entre segurança pública e sistema de justiça no estado de SP? Logo depois do Massacre do Carandiru. É nesse momento que começa a se ter o caldo político para que isso aconteça.

Por quê?

Você passa a ter a pauta da segurança pública, do endurecimento penal como bandeiras políticas muito fortes. O debate eleitoral passa a ser muito contagiado pelo debate de segurança pública. A gente adota a repressão como solução e a política do combate ao inimigo. E essa junção se perpetua no tempo e gera resultados dramáticos em SP: a gente tem a maior população prisional. A taxa de homicídios caiu nos últimos 10 anos, mas a de violência policial está sempre batendo recorde, ano após ano a polícia segue morrendo muito e matando muito também. Essa falta de separação em quem chefia as polícias e quem fiscaliza e quem vai resolver os conflitos decorrentes de uma violação estatal me parece gerar um ambiente muito favorável para violação de direitos por parte do Estado. Ações de chefia de polícia que são próprias do Executivo estarem na mão de quem deveria fiscalizar o trabalho das polícias, que é o MP, que tem atribuição constitucional de controle externo da atividade policial, e o sistema justiça que resolve conflitos. Tendo esses dois atores parte da gestão da segurança pública, você tem no mínimo uma quebra de possibilidade de freios e contrapesos. Quando a gente vai se afastando de modelos de controle da violência, todos tombaremos. Não vejo nenhum sinal auspicioso nesse túnel, vejo um período de barbárie, em que você não pode simplesmente mostrar dados. Você assola a possibilidade de apontar um problema, que dirá a pensar sobre ele e tentar resolvê-lo. Vejo com muita preocupação essas frentes do protagonismo do sistema de justiça e dos militares no centro no poder.

O subtítulo do seu livro é “blindar a elites e criminalizar os pobres”. Como esses dois verbos acontecem?

A gente tem uma máquina de moer gente. A gente tem duas polícias: a Civil e a Militar. Uma destinada a fazer investigação e outra a fazer policiamento ostensivo. Quando a gente olha na prática, quem está fazendo as prisões? Mais de 70% das prisões são feitas pela Polícia Militar em rondas ostensivas, em territórios bem delimitados, onde as únicas testemunhas são os próprios policiais que autuaram o flagrante. A maioria dessas pessoas está desarmada, sozinha, sem antecedentes criminais. Quase 50% dos casos há denúncia de que teve alguma violação no momento da prisão ou na delegacia. Ou seja, são pessoas presas de maneira ilegal por uma polícia que não faz investigação, sem nenhum processo de correção dos desvios estatais e todo o processo criminal vai acontecendo sem nenhum tipo de garantia com os direitos individuais. As pessoas estão sendo atacadas pelo Estado numa pretensa política de segurança pública. Isso eu chamo de criminalização dos pobres. Nós temos pessoas pretas e periféricas sendo presas e que não têm sua cidadania zelada pela Estado. De outro lado, a gente tem a absoluta certeza da impunidade da sociedade paulista que tem algum dinheiro, frequentam festas, onde as drogas são consumidas sem nenhum constrangimento.

Outro elemento que eu trago na tese é de que maneira os tribunais usam o recurso chamado “suspensão de segurança”, que é o que permite o presidente do tribunal suspender efeitos de decisão judicial que contrariam o poder público. Quando a gente olha a maneira como os presidentes do tribunal têm atendido o governador do Estado, é estarrecedor  ao ver que em mais de 70% dos casos que tratavam de contratos, licitações e atos públicos, o governador pede e o presidente do tribunal atende. Enquanto casos gravíssimos de violação de direitos mínimos de sobrevivência das pessoas, é difícil você conseguir uma decisão judicial que preveja a garantia de direitos para os presos. O governador pede e o presidente do tribunal, em 93% dos casos, vai dar a suspensão dos efeitos de uma decisão judicial, por exemplo, que garantiria a instalação de uma equipe mínima de saúde em uma unidade prisional em que no ano anterior mais de 60 pessoas tinham morrido por falta de atendimento médico ou que garantiria banho quente para preso com tuberculose. Tantas outras garantias mínimas de civilidade, de saúde, de direito à vida. O Estado não tem qualquer inibição. A gente perdeu todos os freios inibitórios no exercício da barbárie. A gente tem prendido e matado as pessoas com a certeza de que nada vai acontecer com essas tomadas de decisão. É um sistema de justiça que permite a conservação de opressão e privilégio, garantindo a blindagem de determinados públicos e interesses e a criminalização dos indesejáveis com muita eficiência e barbárie.

Quais são as alternativas para reverter esse cenário?

O primeiro ponto é que a justiça precisa ser transparente. Seja Tribunal de Justiça, seja MP, seja Defensoria Pública, são instituições que passam permanentemente por eleições que mobilizam a carreira no estado todo, que são eleições para chefia das instituições, para os colegiados normativos dessas instituições, para corregedoria… Ou seja, a gente tem carreiras de Estado passando por disputas eleitorais que não são públicas, que não são registradas, que não são acompanhadas, que só têm os próprios membros da carreira votantes. Quais são as bandeiras de campanha que mobilizam votos para ganhar a eleição dessas carreiras? São de fato bandeiras de cidadania? De que maneira a autonomia das instituições têm sido exercida? Tem sido autônoma ou corporativa? A gente compreender as regras de funcionamento e como o jogo político tem sido jogado dentro dessas carreiras políticas talvez nos ajude a encontrar caminhos de questionamento da forma como a gestão pública no campo da justiça tem sido feito. Na prática, o único poder real que nós temos como sociedade civil, mídia, é o constrangimento. Por enquanto, o que nos compete é compreender e trazer à tona o que acontece para trazer alguma mudança. E sem prejuízo de no momento em que a gente ver as esferas institucionais tão dramaticamente corrompidas por interesses desviados do interesse público, lançar mão de esferas internacionais para o questionamento desse funcionamento.


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