07/11/2024 - Edição 550

Entrevista

‘Ressentimentos e preconceitos motivam ataques a escolas’, afirma explica a pedagoga Telma Pileggi Vinha

Escolas são espaços marcantes que conferem identidade, e escolha delas como alvo não é aleatória, diz pesquisadora. Caso mais recente, ocorrido em São Paulo, já é o 11º apenas em 2023

Publicado em 24/10/2023 11:07 - Edison Veiga - DW

Divulgação Reprodução

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O ataque a tiros ocorrido na segunda-feira (23/10) numa escola da cidade de São Paulo foi o 36º caso do tipo no Brasil. E eles são cada vez mais frequentes: 20 ocorreram entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023, sendo que já são 11 somente este ano.

Um relatório produzido por pesquisadores da Unicamp e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), denominado Ataques de Violência Extrema em Escolas no Brasil, vai ser publicado no dia 8 de novembro pela associação Dados para um Debate Democrático na Educação (D3e).

O estudo, que envolveu vários pesquisadores, realizou um mapeamento dos episódios de violência extrema em escolas no Brasil desde o primeiro ataque, em agosto de 2001, até o mais recente, em outubro de 2023.

“Esses ataques intencionalmente ocorridos no espaço escolar caracterizam-se como crimes de ódio ou movidos por vingança”, explica a pedagoga Telma Pileggi Vinha, professora na Unicamp e coordenadora do projeto. “São aqueles motivados por ressentimentos, mas também por preconceitos, discriminação, racismo, misoginia, intolerância à existência de um grupo, aversão completa a outra pessoa, sectarismo, extremismo, entre outros sentimentos, concepções e valores análogos.”

 

O ataque ocorrido nesta segunda em uma escola de São Paulo já é o 11º deste ano. Há uma epidemia de violência extrema nas escolas brasileiras?

Os dados indicam um aumento preocupante na quantidade de ataques em escolas nos dois últimos anos. Dos 36 efetivamente ocorridos em 22 anos, 20 aconteceram entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023, sendo 10 no ano passado e 11 neste ano. Esses ataques foram executados por 39 estudantes: 22 alunos e 17 ex-alunos. Trinta eram menores de idade quando cometeram tais atos. As escolas atingidas foram de distintas dependências administrativas, sendo 17 estaduais, 13 municipais e sete particulares. E a maior parte delas não se encontra em regiões de maior vulnerabilidade social, visto que o nível socioeconômico da maior parte das escolas-alvo é médio alto e alto. Em 22 anos foram 102 pessoas feridas e 40 mortos, na maioria estudantes, incluindo cinco atiradores que se suicidaram. As 35 mortes ocorreram pelo emprego de dois tipos de armas: as de fogo e as facas. Além de ferir mais pessoas, os disparos foram responsáveis por 33 dos óbitos e as lâminas, dois. No Brasil, há 178,3 mil escolas de educação básica. O primeiro ataque a uma escola ocorreu em agosto de 2001 [em Macaúbas] na Bahia.

O estudo coordenado por você deve ser publicado em novembro. Quais conclusões já podem ser antecipadas?

O estudo envolveu vários pesquisadores e realizou um mapeamento dos episódios de violência extrema em escolas no Brasil desde o primeiro ataque, em agosto de 2001, até outubro de 2023. Esses ataques intencionalmente ocorridos no espaço escolar caracterizam-se como crimes de ódio e/ou movidos por vingança. São aqueles motivados por ressentimentos, mas também por preconceitos, discriminação, racismo, misoginia, intolerância à existência de um grupo, aversão completa a outra pessoa, sectarismo, extremismo, entre outros sentimentos, concepções e valores análogos. Caracterizam-se também pelo planejamento e o emprego de algum tipo de arma com a intenção de causar morte de uma ou mais pessoas.

Qual o perfil do agressor?

Os autores dos ataques que efetivamente ocorreram eram do sexo masculino, a maioria brancos, com exceção [dos casos] de Realengo [ocorrido em 2011, no Rio] e Poços de Caldas [no início deste mês], com idades entre 10 e 25 anos. Em geral, tinham relações interpessoais mais restritas, com um ou dois colegas, e certo isolamento social. Demonstravam gosto pela violência e culto às armas de fogo, com concepções e valores opressores, [como] racismo, misoginia e ideais nazistas. [São jovens com] ausência de sentido de vida, sem perspectiva de futuro. Buscam notoriedade, reconhecimento e valorização, principalmente daqueles pertencentes à comunidade atingida e o público dos grupos online com que interagiam. Apresentam também indícios de transtornos mentais variados, nem sempre diagnosticados ou tratados. É preciso, contudo, cuidado para estigmatizar, já que a questão envolve uma combinação de fatores complexos associados à leitura do mundo, não podendo ser reduzida ao transtorno em si. Para todos os autores, a escola foi palco de sofrimento. Eles percebiam-se como alvos de bullying e tiveram experiências dolorosas, como humilhação, exclusão e injustiças. Um outro aspecto a ser ressaltado é que a maior parte dos autores foram usuários da subcultura extremista: interagiam com perfis e comunidades virtuais mórbidas e/ou consumiam conteúdos de ódio.

Há um perfil padrão das escolas-alvo?

A escolha da escola como alvo da violência não é aleatória. As escolas são espaços marcantes que conferem identidade. [O sociólogo americano Jack] Katz chama esse tipo de ataque de “massacres íntimos” porque são direcionados a um local ou grupo de pessoas com os quais o agressor teve, ou imagina ter tido, um envolvimento pessoal profundo, uma conexão pessoal, mesmo que não tenha estado lá por um longo tempo. Por meio dessa brutal violência, o autor [do crime] busca realizar uma transformação radical de uma versão social de sua identidade, mudando a forma como acredita ser visto por aquela comunidade.

Por que esse tipo de ataque tem se tornado comum no Brasil?

São vários os fatores interrelacionados. Efeito contágio: a maneira como as mídias noticiam esse tipo de evento, contendo informações sobre o autor, divulgação de fotos e vídeo e das motivações e estratégias utilizadas lhe dão voz e fama, estimulando outros casos semelhantes. A cobertura jornalística de um massacre pode desencadear até três eventos na semana subsequente. A notoriedade funciona não apenas como recompensa para os autores, mas também como um “chamado a ação” para outros que pensam como eles.

O compartilhamento de postagens [em redes sociais] promove efeito semelhante. Nos últimos anos houve um aumento de um ambiente de ódio formado por lideranças, portais de comunicação, redes sociais com discursos conspiratórios, de conflitos e de inimigos a serem combatidos que mobilizam muitas pessoas.

Também fortaleceram-se movimentos que, alegando lutar para evitar a doutrinação política e ideológica nas escolas, incentivaram os alunos a denunciarem ou gravarem seus professores, criando um clima de medo e insegurança. Não se pode [ainda] desconsiderar as influências das interações nos grupos sociais de que a criança e o jovem fazem parte, como os familiares e amigos, em que algumas concepções e valores podem ser opressores, como a masculinidade tóxica, os preconceitos, as discriminações e as violências.

Muitos dos problemas vivenciados estão relacionados à vulnerabilidade social. A insegurança financeira, por exemplo, é um forte fator para a deterioração da saúde mental. Clima e convivência escolar: para os autores dos ataques a escola foi palco de sofrimento, pois eles tiveram vivências de bullying, exclusão, humilhação e injustiças. E faltou [mencionar] a interação com as comunidades mórbidas online que estão na superfície da internet.

E quais seriam as soluções?

Vou pontuar aqui as recomendações que fazemos no relatório: controle rigoroso de armas de fogo e munições; aprovação de projetos de lei que visam uma maior regulação e responsabilização das plataformas digitais; responsabilização de quem divulga pela primeira vez vídeos dos ataques e depoimentos ou manifestos produzidos pelos autores; implementação de um sistema de registro de ataques; fortalecimento do trabalho contínuo de inteligência; legislação que possibilite a liberação rápida de recursos específico para intervenção após esses episódios com apoio financeiro para vítimas e famílias das vítimas; construção de protocolos adequados à realidade brasileira para atuar após os ataques; programas para desradicalizar jovens; [mais espaços de] lazer e socialização; avaliação dos impactos negativos a médio e longo prazo do policiamento dentro das escolas; investimento na Rede de Atendimento Psicossocial; promoção da convivência democrática e cidadão, tanto no âmbito escolar quanto nas redes.


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