12/10/2024 - Edição 550

Entrevista

Reformas levam trabalhadores ao limite da sobrevivência, afirma pesquisadora

Publicado em 23/04/2019 12:00 -

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Um ano depois de sancionada pelo governo de Michel Temer, a chamada reforma trabalhista promove verdadeiros atos de terrorismo contra o trabalhador. É o que observa a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, em Porto Alegre – RS, Valdete Severo. “Não houve um estímulo ao cumprimento dos direitos trabalhistas, mas sim um verdadeiro terrorismo contra o ajuizamento de demandas, pelo temor do trabalhador de finalizar um processo devendo para o empregador”, observa, ao apontar que muitas pessoas, com medo, deixaram de buscar seus direitos junto à Justiça do Trabalho. Esse é um dos efeitos nefastos dessa reforma.

Além disso, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a magistrada destaca que a tese de muitos defensores da reforma como uma atualização da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT é um engodo. “Estamos atualizando a CLT para deixá-la adequada aos parâmetros do século XVIII”, ironiza. “A CLT precisa ser modificada, é verdade, mas apenas para fazer valer o texto constitucional. As regras sobre despedida por justa causa, por exemplo, não atendem ao parâmetro constitucional de paridade, de ampla defesa ou de proteção contra a dispensa”, completa.

Para Valdete, a situação poderá ser ainda pior, caso a proposta de reforma da Previdência defendida pelo governo de Jair Bolsonaro seja posta em prática. “Será terrível, por isso desejo sinceramente que não seja aprovado. A ‘reforma’ trabalhista retirou contribuição para a Previdência quando, por exemplo, disse que o empregador pode pagar prêmio por produção e não considerá-lo salário, e sim indenização. Isso prova a falácia do argumento de que é necessária a ‘reforma' da Previdência em razão de um suposto déficit de arrecadação”, analisa. Mas os efeitos ainda mais perversos devem ser sentidos ao fim da vida do trabalhador e da trabalhadora, pois, sem alcançarem a aposentadoria, terão de seguir no mercado para terem assistências básicas. “Em resumo, pelo sistema de capitalização, apenas quem contribui tem direito a algum benefício, se tudo der certo (se o fundo de pensão não quebrar, se tiver contribuição por tempo suficiente etc.). Quem adoecer ou quem tiver condição que impossibilite o trabalho, não terá recursos mínimos para sobreviver”, pontua.

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP e mestra em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Atualmente é juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) e leciona na Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS – FEMARGS. Também é integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da USP e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social – RENAPEDTS.

 

Desde a aprovação da reforma trabalhista, quais as principais mudanças ocorridas no que diz respeito à relação de trabalho?

Na prática das relações de trabalho pouca coisa mudou. Os trabalhadores que não tinham seus direitos reconhecidos, como aqueles que trabalham como “chapa”, que trabalham em estéticas ou como “free lance”, todas situações de burla à legislação trabalhista que a “reforma" de certo modo prometeu “consertar” com modalidades precárias de trabalho, como o trabalho intermitente. O que se viu, de fato, foi a migração de trabalhadores que tinham vínculo de emprego para as modalidades mais precárias de trabalho intermitente ou temporário, situação que implica, em regra, perda de qualidade do trabalho e redução do salário.

Também é importante mencionar a mudança em relação à proteção contra a despedida, que já era ínfima na realidade das relações de trabalho, em razão da dificuldade que temos em reconhecer o dever de motivar a despedida, que está lá no inciso I do artigo 7 da Constituição. Isso significa dizer que, apesar do texto constitucional, até hoje se admite que alguém seja despedido sem sequer saber a razão pela qual foi “descartado”. A “reforma” piora essa situação ao prever a possibilidade de extinção por comum acordo entre as partes, algo que reduz pela metade o valor de algumas verbas devidas em razão da dispensa. Também precariza esse momento tão delicado na vida de uma trabalhadora ou de um trabalhador, ao terminar com a exigência de que o pagamento das verbas resilitórias seja feito na presença de um representante do sindicato.

A criação da possibilidade de uma comissão de empregados no âmbito da empresa também gerou problemas em determinadas categorias, na medida em que dividiu trabalhadores, fragilizando o poder do sindicato.

A partir de sua experiência no Tribunal do Trabalho, podemos falar que desde a aprovação da reforma há um novo padrão nas ações trabalhistas? Por quê?

Em relação às ações trabalhistas, a mudança foi drástica e extremamente nociva. A Lei 13.467, chamada “reforma" trabalhista, permite que sejam cobradas custas e honorários de advogado do trabalhador, em relação a todos os pedidos sobre os quais ele não conseguir produzir prova e convencer o juiz de que tem razão. É quase como equiparar a improcedência de um pedido à litigância de má-fé. E, de acordo com a “reforma”, mesmo trabalhadores sabidamente pobres, que tenham direito à assistência judiciária gratuita, podem ser penalizados.

De outra parte, a “reforma" altera a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT para determinar que todos os pedidos tenham indicação de valor, exatamente para que o juiz possa fixar a chamada sucumbência, ou seja, o valor de custas e de honorários de advogado sobre os pedidos improcedentes. Essa indicação de valor no mais das vezes é impossível de ser feita, porque o empregado não tem acesso aos documentos do contrato. Outras tantas vezes, o cálculo torna a demanda inviável, porque a lesão é grave e o alto valor que resulta do pedido faz com que o trabalhador tenha medo de discutir essa lesão em juízo.

Pensemos, por exemplo, na situação de um trabalhador que não recebeu horas extras, foi assediado no ambiente de trabalho e entende que estava em condição de dano efetivo a sua saúde, porque o ambiente era úmido. E admitamos que ele tenha mantido um vínculo de emprego de cinco anos. O valor de cada um desses pedidos será necessariamente alto, em razão do tempo de trabalho e a depender do salário praticado durante o vínculo.

Todos os pedidos, porém, dependem de prova que ou não está em poder do trabalhador (registros de horário e recibos de salário), ou que deve ser obrigatoriamente produzida (insalubridade) ou que é de difícil comprovação (assédio). Isso tem feito com que muitos trabalhadores não ajuízem demanda nem discutam em juízo lesões que realmente ocorreram. Então, isso significa um claro estímulo ao descumprimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores, pois não desestimula a lesão e sim a reparação da lesão, mediante demanda trabalhista.

Defensores da reforma trabalhista também alegavam que havia uma judicialização nas relações de trabalho e que essa mudança diminuiria o volume de ações trabalhistas. Isso de fato ocorreu? E o que está intrínseco nesse discurso que fala em “judicialização das relações de trabalho”?

Ocorreu [diminuição do número de ações trabalhistas] em função do que foi dito na resposta anterior. Não houve um estímulo ao cumprimento dos direitos trabalhistas, mas sim um verdadeiro terrorismo contra o ajuizamento de demandas, pelo temor do trabalhador de finalizar um processo devendo para o empregador. E não porque a ação tenha sido interposta injustamente ou de má-fé, mas simplesmente pela dificuldade de comprovação das alegações, na medida em que – repito – o trabalhador não tem acesso aos documentos que instruem a relação de trabalho.

Então, efetivamente a “reforma" impôs a diminuição no número de ações trabalhistas, mas não porque havia uma demasiada judicialização das relações de trabalho e sim porque a lei penaliza quem vai à justiça, pelo simples fato de não convencer o juiz, mesmo que tenha razão e mesmo que as circunstâncias (como sempre ocorre na relação de trabalho) lhe sejam adversas, pela impossibilidade de ter acesso aos documentos que instruem a relação de trabalho e por estar em uma relação absolutamente assimétrica.

Como compreender a lógica que está por trás das propostas da redução dos direitos dos trabalhadores como forma de desonerar empresas, supondo que com isso possa haver a abertura de novos postos de trabalho?

Essa nunca foi a lógica, simplesmente porque o argumento é ilógico. É a circulação de riqueza que fomenta a economia e apenas uma economia “aquecida”, para usar os termos dos economistas, permite a geração de empregos. Portanto, não é preciso muito para compreender que retirar dinheiro de circulação, pela redução dos salários, pelo incentivo à terceirização e às formas precárias de contratação, pela facilitação da despedida, apenas retira dinheiro de circulação e, por consequência, dificulta a economia. Se a intenção fosse abrir novos postos de trabalho, o caminho sequer passaria pela retirada de direitos trabalhistas.

Relacionando a reforma trabalhista com a reforma da Previdência proposta pelo atual governo, qual imagina que deva ser o impacto sobre a vida do trabalhador caso esse projeto do governo Bolsonaro seja aprovado?

Será terrível, por isso desejo sinceramente que não seja aprovado. A “reforma" trabalhista retirou contribuição para a Previdência quando, por exemplo, disse que o empregador pode pagar prêmio por produção e não considerá-lo salário, e sim indenização. Isso prova a falácia do argumento de que é necessária a “reforma” da Previdência em razão de um suposto déficit de arrecadação. Aliás, a CPI do Senado já desfez esse equívoco.

O problema é que a “reforma" da Previdência, que assim como a trabalhista não se trata de reforma e sim de desmanche, vai além da precarização promovida pela Lei 13.467 e praticamente torna impossível a aposentadoria, por exemplo. A PEC 06 exige idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 para homens (60 para professores) mais 40 anos de contribuição, para a possibilidade de aposentadoria integral. Em uma lógica de trabalhos precários, como o intermitente ou o temporário, ou ainda o terceirizado, isso significa a condenação das trabalhadoras e trabalhadores a trabalharem até a morte, e não se trata de um sentido figurado.

O que mais espanta é que isso nem é o pior da PEC 06. O pior é a desconstitucionalização da Previdência, relegando à lei complementar a possibilidade de instituir um regime de capitalização que simplesmente acaba com o sistema de solidariedade social. Em resumo, pelo sistema de capitalização, apenas quem contribui tem direito a algum benefício, se tudo der certo (se o fundo de pensão não quebrar, se tiver contribuição por tempo suficiente etc.). Quem adoecer ou quem tiver condição que impossibilite o trabalho, não terá recursos mínimos para sobreviver.

Como avalia a proposta da “carteira de trabalho verde e amarela”, defendida pelo ministro da Economia Paulo Guedes?

Avalio como ridícula. Em primeiro lugar, porque absolutamente inconstitucional e ilegal. Essa “proposta" desafia o parâmetro constitucional de garantia do direito fundamental à relação de emprego (art. 7, I, da CF) e os artigos 2 e 3 da CLT. Não há como classificá-la de outro modo, pois a pretensão declarada é a de que os trabalhadores não tenham direito algum e tudo seja “negociável”, o que significa retornar à lógica do século XVIII que, diga-se de passagem, provou historicamente sua inviabilidade, inclusive sobre a perspectiva econômica.

Outra defesa sempre feita à reforma trabalhista é a de que atualizaria a CLT. Isso de fato aconteceu?

Bom, a resposta está no texto da CLT, que mantém a expressão “juntas de conciliação” em vários artigos, como o 39 ou o 486, por exemplo, ou no texto da “reforma”, que autoriza que a mulher gestante ou lactante trabalhe em condição insalubre, ou seja, em condição de prejuízo efetivo à saúde. Se isso for atualização, estamos atualizando a CLT para deixá-la adequada aos parâmetros do século XVIII.

Quais os desafios para se conceber uma CLT que, de fato, dê conta das transformações do mundo do trabalho no século XXI?

Não há transformação que comprometa o texto da CLT. A CLT precisa ser modificada, é verdade, mas apenas para fazer valer o texto constitucional. As regras sobre despedida por justa causa, por exemplo, não atendem ao parâmetro constitucional de paridade, de ampla defesa ou de proteção contra a dispensa.

Os desafios do século XXI dizem com redistribuição de renda e de propriedade, dizem com a sobrevivência física, considerando a deterioração do planeta por circunstâncias que seriam facilmente enfrentadas, se não fosse a forma de produção, circulação e distribuição de riqueza, ou seja, se não fosse o modelo capitalista de produção. A CLT não é, portanto, nosso verdadeiro desafio; na realidade, a CLT é bem mais contemporânea e eficaz do que se imagina. Se houvesse realmente uma preocupação em promover desenvolvimento econômico, a questão seria inversa; estaríamos preocupados em fazer valer as regras trabalhistas e em aumentar os salários, para fazer circular o dinheiro e, com isso, fomentar a economia interna.

Em alguma medida, diante da atual conjuntura, podemos afirmar que a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho estão ameaçados de extinção? Por quê?

Estão! Sem dúvida! E isso fica claro quando o novo governo adota, como uma de suas primeiras medidas, a extinção do Ministério do Trabalho, passando parte de suas atribuições ao Ministério da Justiça. O fato de a Justiça do Trabalho ser alvo, exatamente porque funciona e, em alguma medida, dá voz à classe trabalhadora e recompõe o dano causado pelo capital, de uma tentativa de extinção fica muito claro com a lei orçamentária de 2016, que ao contrário do que faz com outras instâncias do poder judiciário, suprime 90% dos gastos com investimento e 50% dos gastos já previstos para 2016. Essa lei, que foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal – STF, aliada à emenda constitucional 95, que congelou gastos sociais por 20 anos, tem sem dúvida alguma o objetivo de tornar impraticável a justiça do trabalho.

Está havendo a implementação do chamado E-Social. Que alterações nas rotinas e relações de trabalho – empregado e empregador – devem ocorrer?

O e-social é apenas um sistema que burocratiza ainda mais a relação entre capital e trabalho. Nada auxilia no cumprimento dos direitos trabalhistas. Não é negativo, mas sem dúvida não auxilia o cumprimento dos direitos trabalhistas porque burocratiza ainda mais os pagamentos.


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