Entrevista
Para Carlos Moraes, seria melhor investir em triagem e reciclagem, já que o Brasil só recicla 3% de seus resíduos
Publicado em 02/10/2023 9:12 - Katia Marko e Sílvia Marcuzzo - Brasil de Fato
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Estudioso da gestão ambiental e dos processos de reciclagem, o professor Carlos Alberto Moraes, da Escola Politécnica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo (RS), está envolvido em uma pesquisa sobre a importação e exportação de resíduos sólidos, urbanos e industriais pelo Brasil.
No levantamento, descobriu que importamos refugos que não poderiam estar entrando no país por não serem passíveis de reutilização.
Tudo ficou mais fácil para os importadores depois que o governo Bolsonaro zerou a alíquota para entrada no Brasil daquilo que os demais países resolveram descartar.
É sobre isso que Moraes fala, além de outros temas – como a falta de uma ação coordenada entre estado e municípios para enfrentar as cheias e o fracasso do emprego de contêineres em Porto Alegre – nesta conversa.
Você participa de um núcleo na Unisinos que trabalha com reciclagem de resíduos e que está apresentando uma importante pesquisa sobre importação e exportação de resíduos sólidos, urbanos e industriais no Brasil. Qual o objetivo desse núcleo?
O núcleo de caracterização de materiais existe desde 2002. Estamos fazendo 21 anos em 2023. Temos 70 pesquisadores e viemos trabalhando fortemente com duas principais linhas. Uma delas desenvolve soluções para os resíduos sólidos industriais e urbanos. São soluções que podem passar pelo desenvolvimento de novos produtos e processos, e também agregando valor principalmente aos resíduos sólidos urbanos criados pelas cooperativas e que, muitas vezes, carecem de uma melhor entrada no mercado ou para voltar à cadeia produtiva.
Por outro lado, também trabalhamos com a prevenção, buscando otimizar processos produtivos para que gerem menos resíduos. Ou que a gente busque, através de ferramentas de gestão ambiental, demonstrar ao setor produtivo a necessidade de reduzir desperdício, a partir de uma produção mais limpa por exemplo.
Fale um pouco dessa pesquisa que aponta o aumento da importação de resíduos sólidos no Brasil.
Em 2021, entramos para a Aliança Resíduo Zero Brasil e, no ano passado, numa parceria com a ONG internacional Gaia, fomos contratados para avaliar a situação da importação e exportação de resíduos sólidos. Existe um tratado, a Convenção de Basiléia (tratado internacional firmado pelo Brasil em 1993 e que visa proteger a saúde das pessoas e o meio ambiente dos efeitos de resíduos perigosos), que regula como deve se dar essa importação e exportação.
Então, no ano passado, nos deparamos com a importação de resíduos sólidos que não poderiam estar entrando no Brasil por não serem passíveis de utilização novamente. E também o governo havia reduzido as alíquotas de 2021 para cá para a importação.
E também tem uma questão que é de difícil fiscalização. Acho que estamos passando por um processo em que vários órgãos de governo da área ambiental e também o pessoal que atua não só nas barreiras alfandegárias têm dificuldade de fiscalização. Se fosse possível verificar in loco todos os contêineres, acredito que esses números seriam ainda maiores, ou menores, não sei, mas o fato é que, mesmo contando com esse tipo de informação, já se identificam realidades como essa…
Sem dúvida. A informação (é obtida) a partir de sites da Comex (comércio exterior) e do próprio Ibama, que é o órgão responsável por estabelecer a legislação sobre importação e exportação de resíduos sólidos. Não tivemos acesso nem ao corpo técnico dessas instituições, somente aos dados. O que percebemos apenas avaliando as (informações) oficiais, é que os resíduos são identificados como classes. Ou seja, como tipos macro de resíduos. Por exemplo, resíduos, aparas, desperdícios de plástico.
Bom, mas a gente tem uma infinidade de tipos de plástico, e eles são utilizados em diferentes setores e aplicações. Não se consegue acesso oficial sobre o tipo de plástico que está se falando em termos de exportação.
No caso de importação, a mesma coisa. O que houve de notícias envolveu contêineres que chegaram ao Brasil contendo materiais que deveriam ser para reciclagem. Mas, na verdade, eram inservíveis. Um exemplo foi o vestuário hospitalar. Entrou no Brasil a partir dos Estados Unidos e deveria ser reutilizado quando era, na verdade, resíduo sólido hospitalar, contendo sangue, etc.
Nitidamente uma forma de tentar entrar de forma legalizada, como se fosse uma importação, mas trazendo resíduos que precisariam ir para um processo de incineração. A questão dos pneus também. Acho que o pior ainda é que somos um país que, apesar de ser até vanguarda na questão da triagem e da segregação do resíduo sólido urbano pelos catadores, hoje apenas triamos e reciclamos 3% do nosso resíduo sólido urbano. E aí não faz sentido estarmos importando e exportando. Precisamos sim é investir na triagem e reciclagem desses materiais para a eles voltarem para a cadeia produtiva.
E também já geramos muito resíduo aqui que não se consegue dar conta. No governo Bolsonaro, esse tipo de importação foi à alíquota zero, sem nenhum imposto. O que foi modificado no governo Lula, inclusive por pressão dos catadores que conseguiu elevar a alíquota para 18%. Ou seja, a gente continua importando. E aí pergunto: temos formas de reaproveitar ou reciclar resíduos, o que hoje se está tendo dificuldade de fazer aqui no mercado? O que se vê é que, além de ser pouco o triado, tem coisas que o mercado mesmo não consegue valorizar. Está sendo mais barato comprar matéria-prima virgem do que reaproveitar. Temos tecnologias para dar uma solução melhor para isso?
Temos sim tecnologia. As cooperativas de coleta seletiva estão capacitadas. O que a gente precisa é que a indústria, o comércio, o poder público, invistam o que deve ser investido, de acordo com a política nacional de resíduos sólidos promulgada em 2011. Lá traz a implementação da logística reversa, a responsabilidade estendida do produtor.
Então, ele tem responsabilidade sobre o resíduo pós-consumo, seja importador, seja produtor interno, o próprio comércio também que está vendendo. Todos esses atores são responsáveis e nós, como consumidores, somos responsáveis para fazer a triagem em casa, a separação correta, e esse material tem que chegar nas cooperativas. Eu diria que os problemas são menos tecnológicos e muito mais de gestão e vontade política.
Voltando à pesquisa: existem informações sobre para onde vai o resíduo que é importado?
Não tem informação sobre quem está comprando esses resíduos. Apenas os valores numéricos de quantidade importada e a origem dos países que enviam para o Brasil.
E essa pesquisa vai ser apresentada para algum órgão de governo, vai servir para algum questionamento?
Já repassamos o relatório para a Aliança Resíduo Zero e a ONG Gaia. Temos reunião marcada com as duas ONGs para definir como serão feitos os encaminhamentos. A previsão é de continuidade deste tipo de projeto já que ele recebe apoio internacional. A GAIA está fazendo esse mesmo estudo em outros países, já fez no México e na Argentina. Agora, com o Brasil, com esses projetos que desenvolvemos, fizeram em El Salvador e no Chile.
Tem países da América Latina que mandam resíduos para o Brasil ou recebem resíduos daqui e da América Central, África, Ásia. Por isso surgiu a Convenção da Basileia. Há uma pressão bastante grande hoje dessas instituições internacionais para que haja uma melhor fiscalização já que a regulamentação existe e a convenção internacional existe.
Acho que a fiscalização é uma questão nevrálgica hoje em várias áreas. Mas, agora, tem países inclusive que não estão aceitando mais resíduos, como a China.
Sim, já tivemos esse tipo de informação. No meu ponto de vista, esses 18% ainda é pouco. Se um grande player, um grande país que exporta e importa de tudo quanto é parte do mundo que é a China, acho que o Brasil deveria também seguir uma regulamentação mais radical. Se não é possível encerrar esse tipo de situação que as alíquotas sejam maiores. É claro que existem alguns casos específicos. Muitas vezes, o material nem é colocado como resíduo. É colocado como sucata eletrônica. E sucata eletrônica pode ser muita coisa como um computador inteiro estragado.
Temos conhecimento de empresas aqui que acumulam placas de circuito impresso e que são basicamente os materiais presentes em computadores, celulares, notebooks, e vários outros equipamentos eletroeletrônicos e essas placas despertam grande interesse internacional em países como Bélgica, Japão e a própria China, em função dos metais raros presentes nessas placas. E existe esse comércio das placas que saem do país como sucatas ou até como matéria-prima para a obtenção desses metais por outros países.
Muitas vezes, quando uma siderúrgica compra sucata de aço, ela não é mais considerada como resíduo e sim como matéria-prima. Então, tem algumas situações em que a lei é supostamente driblada e o material é exportado como matéria-prima, como commoditie.
Essa questão dos resíduos é um gargalo para muitos municípios. Porto Alegre, por exemplo, ainda gasta cerca de R$ 3 milhões por mês para enterrar o dito lixo. E não consegue dar conta. Apesar de haver uma política nacional de resíduos sólidos, ela acabou não sendo implementada e muitos municípios não têm reciclagem. Qual sua avaliação sobre isso?
É uma pena que Porto Alegre tenha tomado políticas públicas erradas a partir de um determinado momento, porque estava num processo de ter coleta seletiva em todo o município. Foi vanguarda. Foi uma das primeiríssimas (cidades) a estabelecer a coleta seletiva. Na época, levamos esse conhecimento para fora do país e hoje estamos bem mais atrasados do que países, inclusive da Europa, que eram mais atrasados então. Hoje, estamos pagando tudo isso para enterrar resíduo reciclável. Materiais recicláveis que estão indo para o aterro sanitário por erro de políticas públicas assumidas no passado recente.
Do meu ponto de vista, os contêineres foram o primeiro grande erro que Porto Alegre realizou a partir de 2011. Faz apenas 12 anos. Os contêineres, naquele primeiro ano, não tinham nenhuma identificação sobre o que era para colocar ali. Apesar da propaganda, divulgação em rádio e televisão, dizendo que era somente para o rejeito. Depois que a cidade resolveu identificar os conteineres já era tarde. As pessoas tinham deixado de fazer a separação.
Um segundo erro de Porto Alegre foi uma lei estabelecendo que, nos dias de coleta do rejeito, mesmo que na frente da casa, tenham lá os conteineres de recicláveis e de rejeito. O caminhão leva tudo. Não tenho problema em dizer isso porque acontece isso no meu condomínio. Claro que tem uma parcela de culpa do consumidor, que deveria somente colocar o reciclável às terças e quintas. Mas a lei exige que essas empresas peguem. Não é culpa da empresa e sim da legislação e da falta de uma melhor educação ambiental.
Em alguns lugares (outros municípios) é ainda pior porque nem coleta seletiva tem. E uma outra coisa que estamos reforçando muito: é preciso separar o resíduo que é compostável do rejeito. Hoje, estamos enviando para o aterro, além de material reciclável, também material compostável. As pessoas poderiam separar essa biomassa – casca de fruta, de verdura – que se pode compostar. Assim, reduziríamos em muito a quantidade de resíduo que vai para o aterro.
Com isso, o próprio município economizaria. Isso é o mais incrível: o município está pagando cada vez mais para dispor resíduo no aterro sanitário por falta de uma melhor educação ambiental da população. Poderia separar esse resíduo que gera adubo, que volta a fertilizar o solo, que ali tem fósforo, tem potássio, elementos finitos na natureza, que são fundamentais no crescimento das plantas.
Hoje, infelizmente, Porto Alegre não tem investido quase nada na educação ambiental da população. Um exemplo: estive em um evento em que os síndicos tinham muita dificuldade de entender a importância de mandar os resíduos recicláveis para as cooperativas através da coleta da Cotravipa e não dar para um carrinheiro. As pessoas devem entender que são um importante elo desse processo, de que é importante (os resíduos) irem para as unidades de triagem porque ali existe um grupo batalhando para se manter. As unidades de triagem recebem em cima do que é triado. Se ficam só com aquilo que outras pessoas não pegaram, vão conseguir muito menos, vão ficar mais tempo triando e (obtendo) e muito menos dinheiro. É uma realidade cruel que acompanhamos e também pelo fato de que os materiais estão valendo menos também, não é?
Exatamente. Ao longo desses 30 anos, os catadores se organizaram. Tem a sua associação nacional, tem capacidade e conhecimento para fazer a triagem correta. Nas suas instalações tem, se não na forma ideal, a tecnologia minimamente necessária para fazer a separação. Conhecem, mais que nós inclusive consumidores, o que é passível de ser comercializado no mercado. Obviamente, o um mercado não valoriza esse trabalho fundamental. Na verdade, insistimos que eles são prestadores de serviço ambiental. Tem que ser valorizados do ponto de vista social, mas principalmente do trabalho, e receberem pelo serviço que prestam.
Na maioria, as pessoas não têm o mínimo conhecimento. Vejo pelos meus alunos. Eu pergunto para onde vai o resíduo que vocês separam em casa? A maioria não sabe para onde vai. Então, isso estando aí no século 21, é muito crítico. As prefeituras devem incentivar as cooperativas de triagem. Esta valorização veio inclusive para que as pessoas não tivessem que ficar coletando na rua e levando para um local sem a mínima condição de trabalho. Com as cooperativas a gente progrediu nessa condição de trabalho, mas, claro, que em função de questões econômicas, continua havendo pessoas coletando na rua. Mas esse material tem que ir para a cooperativa porque lá está sendo realizado o trabalho adequado de triagem.
Há uma unidade de triagem na zona Norte, em um terreno que ficou muito mais baixo em relação às obras que foram feitas nas ruas e avenidas e toda a água ficou ali. Eles precisam de uma bomba para tirar a água. Tem outros galpões com goteiras, um sistema de esteira elétrico que pode até pegar água e causar um choque. Muitos catadores não estão conseguindo ir trabalhar porque estão com água em casa. Na verdade, toda essa cadeia da reciclagem está com os elos muito fragilizados pelo poder público. Todo mundo que entende dos mecanismos de funcionamento de uma cidade precisa saber que a coleta precisa funcionar minimamente. Senão, o que acontece? Se enche de água, por exemplo, na região das ilhas do Guaíba, esse resíduo vai por água abaixo, vai parar no oceano. É um prejuízo para todo mundo, não?
O que se observa é que os governos entregam esses locais para a triagem em edificações que, muitas vezes, foram, por exemplo, a massa falida de alguma empresa. E repassam para as cooperativas sem a mínima condição. Vias públicas são função do município. Ele tem que entregar essas melhorias para todas as regiões. Não importa se é classe média, classe alta, mas principalmente para a população de baixa renda e os bairros periféricos. Desde que começou esse nosso inverno terrível – já desde junho essas chuvas trazendo muita destruição – observamos que não existe um trabalho consorciado.
Quer dizer, o Estado não puxa sua responsabilidade como administrador. Precisa fazer com que todos os municípios trabalhem em conjunto. Quando dá enchente em uma cidade – e é o que está acontecendo, começou pelas cidades rio acima – todo mundo sabe que rio abaixo vai chegar essa enchente. Parece que os municípios de rio abaixo não se prepararam para isso. Estamos em uma emergência climática, mas os fatos estão ocorrendo há praticamente três meses, sem fôlego, sem parada. E vemos os municípios cada um se preocupando com o seu, sem o estado tentar um trabalho em conjunto. É necessário senão não vamos resolver os problemas.
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