11/12/2023 - Edição 525

Entrevista

‘Em função do Holocausto, o Estado Judeu pode tudo, inclusive outros holocaustos’, afirma Breno Altman

O jornalista, de origem judáica, reforça: ‘o sionismo é uma doutrina supremacista e racista, muito semelhante àquela que guiava a África do Sul no período do Apartheid’

Publicado em 08/11/2023 10:09 - Fórum - Edição Semana On

Divulgação Reprodução

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O jornalista Breno Altman vem de uma família com larga história vinculada ao movimento operário, socialista e comunista, uma família de origem judaica. São 4 gerações de luta contra o sionismo, “porque o sionismo é uma das mais perversas doutrinas racistas do nosso tempo”, afirma.

Fundador do site Opera Mundi, Altman é uma das principais vozes entre os judeus de esquerda em apoio ao direito dos palestinos as suas terras e contra a política colonialista do sionismo. Por isso, foi alvo de ameaças nas redes sociais.

Para Altman, os sionistas buscam vender a ideia de que judaísmo é igual sionismo: uma grande mentira, aponta. “O sionismo é apenas uma corrente político-ideológica, hoje majoritária, mas apenas uma corrente político-ideológica do judaísmo, uma corrente racista, colonial, que foi combatida por setores da coletividade judaica mundial desde seu início”.

Nesta entrevista, ele explica em detalhes o surgimento do movimento que, segundo sua avaliação, “é uma doutrina supremacista, racista, muito semelhante àquela que guiava a África do Sul no período do Apartheid”.

 

O senhor tem recebido ameaças devido sua posição sobre o conflito no Oriente Médio. O que houve?

Eu não acho que as ameaças tenham qualquer relevância. Eu acho que o relevante no episódio é desmascarar como funciona o sionismo. Houve um grupo de sionistas com nome e sobrenome, um grupo constituído, atento. Esses cidadãos vão organizando listas de quem é “a favor” e de quem é “contra” Israel, de quem tem que ser cancelado, perseguido, impugnado, e de quem tem que ser apoiado. Jornalistas, gente da academia, ativistas da política. E começa um festival de ameaças, de incentivo à produção de fake News visando intimidar quem se coloca na solidariedade à Palestina.

E lá pelas tantas aparece um cidadão dizendo claramente que meus dentes deveriam ser quebrados, meus dedos deveriam ser cortados e assim por diante. Foi isso que aconteceu. Agora, isso é mais revelador, fundamentalmente revelador, de como funciona o sionismo, seu grau de violência, seu grau de ilegalidade, seu grau de conspiração.

A dinâmica do sionismo é muito parecida com o bolsonarismo, não é?

A mesma linguagem. O mesmo caráter pérfido no trato da coisa pública. A mesma arrogância de quem imagina que pode intimidar quem deles diverge… E é normal. O sionismo é uma doutrina supremacista, racista, muito semelhante àquela que guiava a África do Sul no período do Apartheid. Muito semelhante. Até mais intensa e sofisticada. Ali na África do Sul, o discurso da superioridade racial não era tão claro. Ele tinha dissimulação. No caso de Israel não tem dissimulação. É a Terra Prometida, a Terra bíblica de Israel, para um povo eleito. Quem é o povo eleito? Os judeus. Então, Israel está estruturado como um estado de supremacia racial. E as doutrinas marcadas pelo supremacismo são, normalmente, muito violentas, muito arrogantes, porque quando você se considera superior pela sua essência, pela forma como você nasceu, pelo berço da onde você veio, isso é alimentador a dor de uma arrogância brutal. A gente via isso entre os escravocratas no Brasil, vimos entre os afrikaners, e vemos no sionismo. A arrogância, a violência. E é isso que está em curso.

E quando aparece alguém de origem judaica, como é seu caso, que confronta o discurso do sionismo, para eles é uma traição máxima.

Exato. Porque eles buscam vender a ideia de que judaísmo é igual sionismo, quando isso é uma grande mentira. O sionismo é apenas uma corrente político-ideológica, hoje majoritária, mas apenas uma corrente político-ideológica do judaísmo, uma corrente racista, colonial, que foi combatida por setores da coletividade judaica mundial desde seu início. Desde o seu início foi denunciado o potencial racista e colonial dessa doutrina. Os judeus comunistas do século XX combateram o sionismo. Eu venho de uma família que tem uma larga, uma longa história vinculada ao movimento operário, ao movimento socialista, ao movimento comunista, e é uma família de origem judaica. São 4 gerações de luta contra o sionismo, porque o sionismo é uma das mais perversas doutrinas racistas do nosso tempo, e é muito sofisticada. Ela tem uma espécie de aceitação social. Porque o racismo não tem aceitação social, ele tem que se encobrir. Já o sionismo é uma teoria, uma doutrina racista com aceitação social.

Como surgiu o sionismo?

Essa é uma longa história, e ela não nasce nos últimos anos, nasce no final do século XIX. Temos que entender os antecedentes. Os judeus sofrem uma perseguição milenar, uma perseguição que alguns datam da primeira diáspora, de quando o Império Babilônico destruiu o reino de Judá. Outros datam do momento em que o Império Romano, no ano 70 dC, destruiu Jerusalém e depois houve o massacre dos judeus que restavam na Palestina entre 132 e 135 dC, pelo imperador Adriano. A partir daí começa a Segunda Diáspora judaica. E os judeus sofreram uma terrível perseguição, isso é verdade. Uma perseguição brutal, não diante dos mulçumanos, que não têm nada a ver com esta história. É o cristianismo que desata a perseguição aos judeus.

Aliás, grande parte dos judeus se protegeu se “arabezando”. Parte dos judeus que escaparam, por exemplo, da Inquisição na península ibérica, os chamados sefaradi, foram para o norte da África, e foram aos países mulçumanos para se proteger do cristianismo. Havia uma relação muito boa entre judeus e mulçumanos. A guerra anti-judaica, digamos assim, a guerra anti-semita, era do cristianismo. Dos três grandes momentos históricos de perseguição dos judeus, nós vamos ver o cristianismo no protagonismo de dois: a Inquisição – que tem a ver com o cristianismo ortodoxo – e o holocausto – que tem a ver com o estado cristão protestante, que era o estado alemão. Então, nada a ver com os mulçulmanos, eles não têm nenhum problema histórico com os judeus. Quem tinha era o cristianismo. E essa perseguição aos judeus – cujo ápice foi o Holocausto – mas que no século XIX já era muito clara – gerou um debate na comunidade judaica do mundo inteira: como se proteger dessa perseguição?

Havia duas correntes. A “integracionista internacionalista”, que pregava que os judeus já estavam há centenas de anos na diáspora, e que eles deviam, preservando tradições e cultura, se integrar às sociedades que haviam acolhido seus ancestrais. Nesse processo, eles se fundem, como uma minoria extremamente perseguida, às grandes lutas populares do século XIX, às grandes revoluções. O patriarca das rebeliões socialistas e da ideologia socialista é o judeu Karl Marx. Ou seja, a maior parte das direções revolucionárias dos partidos socialistas, e depois dos partidos comunistas até os primeiros anos do século XX eram os judeus. Um terço do comitê central do partido Bolchevique era de judeus.

A outra corrente é o sionismo…

Sim, que propõe outra coisa: criar um lar judeu, um estado judeu, para que eles pudessem se proteger. Veja bem, era diferente dos outros modelos de autodeterminação nacional, é diferente dos outros movimentos de independência nacional, no qual o estado se constitui a partir de uma nacionalidade, que é um misto de etnias, de culturas e de origens. Não. A proposta do sionismo era criar um estado não com base na nacionalidade, mas na base da etnia. Nem a África do Sul fez isso. É o único estado na modernidade – pode existir algum exemplo minoritário – que se reivindica pelo seu caráter étnico. Isso é o sionismo já no século XIX.

E para ele ter força e derrotar os integracionistas e atrair a massa dos judeus no mundo, o sionismo – que era laico na sua origem (todos os fundadores do sionismo, especialmente Theodor Herzel, o pai do sionismo, eram não religiosos) se funde a setores da religião judaica para poder ter o discurso do retorno à Palestina, à Terra Prometida, o povo eleito… Todos aqueles verbetes do Velho Testamento, que justificaram a excepcionalidade judaica. E aí o sionismo se torna majoritário, com a mensagem sedutora ter um estado para sua raça, para seu povo.

Há um “povo” judeu?

Tenho muitas dúvidas do conceito de “povo judeu”, porque acho que são “povos judeus”. São muitos povos judeus diferentes entre si. E isso, ao invés de se enfraquecer com o Holocausto, se fortalece. O Holocausto é o maior genocídio do século XX e talvez seja, em termos de intensidade, o maior genocídio da história. A morte de 6 milhões de judeus num espaço de poucos anos não tem paralelo na história, como crime organizado, como ação de genocídio tecnicamente consolidada. O objetivo não era outro que exterminar a etnia. Seis milhões em dez anos. Então, isso fortaleceu os judeus sionistas e atraiu os judeus não sionistas, porque ter um estado judaico parecia ser a única garantia de proteção, para que isso não se repetisse. E aí o Holocausto vira o álibi do sionismo. Ou seja, em função do Holocausto, o Estado Judeu pode tudo, inclusive, outros holocaustos.

Os ataques à Gaza tem relação com as eleições presidenciais norte-americanas?

Não, o ataque à Gaza não tem relação com isso, o que tem relação com as eleições presidenciais norte-americanas é o apoio incondicional do Biden ao governo israelense. Nós devemos levar em conta que Israel tem uma particularidade nas relações com os EUA. Por exemplo: eu assisti a um trecho de uma entrevista do presidente da Federação Árabe-Palestina em que ele afirma que o responsável pelos ataques a Gaza são os EUA e que Israel é um peão nas mãos dos EUA. Eu não concordo com esse ponto de vista. Acho que a relação de Israel com os EUA tem uma particularidade, que é diferente dos demais estados capitalistas submetidos aos EUA. Há uma via de mão dupla. Normalmente nas relações do grande estado imperialista com os demais países capitalistas há uma relação de subordinação. Os EUA mandam e os demais capitalistas obedecem. Não é assim com Israel. Não é que os EUA não tenham influência, tem e muito. Mas Israel exerce muita influência nos EUA através da burguesia judaica sionista.

A burguesia judaica sionista tem um enorme peso nos EUA.

Ela tem incidência nos fundos financeiros, na indústria cultural, especialmente no cinema, na indústria da comunicação, ela é financiadora de campanhas eleitorais. Em Israel moram 6,5 milhões de judeus. Nos EUA eles são 5 milhões. É uma comunidade muito forte. Há uma burguesia judaico-sionista que não se reporta à Casa Branca, se reporta à Tel Aviv, ao comando do estado sionista. Isso significa dizer que, ao contrário da relação que os EUA têm com os outros países capitalistas, Israel exerce disputa e hegemonia dentro dos EUA. Ele força e obriga a agenda. Tanto é assim que na história norte-americana – nós estamos falando aí de 200 e tantos anos – o único governante que se dirigiu diretamente ao parlamento norte-americano foi Benjamin Netanyahu. Ele foi até o parlamento norte-americano discursar, num regime presidencialista e numa potência como os EUA. É impensável isso, que um agente político de um outro país vá ao parlamento estadunidense discursar. Então, é uma relação de mão dupla, é diferente, é uma excepcionalidade. Os EUA, claro, são muito mais poderosos que Israel.

Os EUA poderiam acabar com essa guerra?

Em 24h, como no passado aconteceu. Como parar o massacre? Uma das possibilidades, que não vai ocorrer, seria os EUA dar um “stop” em Israel. Já aconteceu no passado, foi em 1956, quando Israel toma o Canal de Suez, num episódio conhecido como a Guerra de Suez. O então presidente egípcio, Gamal Nasser, nacionaliza o Canal de Suez, que até então era controlado pelo Reino Unido. Israel, apoiado pelo Reino Unido e pela França, ataca e toma Suez, entrando pelo Sinai. A União Soviética ameaçou atacar diretamente o exército de Israel em defesa ao Egito. E os EUA também, porque eles não aceitavam a ação do Reino Unido e da França. Chegou-se a cogitar, na época, em plena Guerra Fria, a criação de uma força-tarefa comum, soviética e americana, caso Israel não recuasse nas próximas horas. É evidente que, diante de uma ameaça dessa Israel recuou em desabalada carreira, o Reino Unido e a França estão correndo até hoje, até hoje não pararam de correr. Então, imediatamente, parou-se a guerra porque houve uma imposição norte-americana, além, evidentemente, da ameaça soviética.

O que mantém a supremacia israelense sobre a palestina?

Para manter o poder do estado colonial é necessário extrema e permanente violência, que é o que o Estado de Israel faz desde sua origem, de forma contundente nos últimos 20 anos, contra a Palestina. Israel cercou a Cisjordânia com um muro. Israel cercou a Faixa de Gaza com um muro. Gaza é o maior campo de concentração a céu aberto desde a 2ª Guerra. É um grau de opressão brutal. Os palestinos não têm direito à circulação, não têm direito a buscar emprego onde há uma economia forte, que é a economia de Israel, enquanto que a economia palestina é submetida a um asfixiamento absoluto. Porque quem controla a água e a luz dos territórios palestinos é Israel. Quem coleta os impostos é Israel. Quem controla o comércio exterior é Israel. Na prática, os acordos de Oslo – uma das maiores picaretagens da história – repassaram para autoridade palestina – em troca de um punhado de terras descontínuas – a obrigação de reprimir a rebelião palestina. A função principal é policial contra os próprios palestinos.

Veja a entrevista completa.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *