02/11/2024 - Edição 550

AUAU MIAU

Carinha de dó do seu cão tem motivo

Descubra como ele se comunica com você

Publicado em 14/10/2024 11:08 - André Marchina Gonçalves – UOL

Divulgação Imagem: Getty Images/iStockphoto

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Aqui em casa eu tenho dois cães bem diferentes. O Chico, meu vira-latas, é extremamente comunicativo, e por meio de seus latidos, olhares e expressões, sou capaz de entender tudo o que ele quer. Noto uma clara diferença quando ele pede cada uma das coisas: passear, comida, colo? Já a Tereza, a golden retriever, é mais discreta. Porém, ela é especialista em fazer aquela carinha de coitada e conquistar a todos.

CLIQUE AQUI E SIGA A SEMANA ON NO INSTAGRAM

Mas até que ponto a maneira com que vejo meus cães se comunicarem é algo real, comprovado cientificamente? O que observo tem embasamento ou são apenas coincidências e o meu orgulho em ter animais incríveis que me levam a atribuir características humanas a eles?

Para compreender essa capacidade de comunicação, é fundamental entender como se deu a relação ao longo do tempo e os reflexos que isso teve nas características do cão moderno.

Relação antiga

A relação entre a espécie humana e os cães existe há muito tempo, com a domesticação de lobos tendo início há algumas dezenas de milhares de anos. Os momentos iniciais dessa relação ainda são uma incógnita para os cientistas, e muito se tem estudado a respeito.

Um estudo genético realizado com 27 cães que viveram há milhares de anos, e que foram encontrados em diversas partes do mundo, concluiu que eles tinham um ancestral em comum, provavelmente vindo da região do Oriente Médio. Porém, naquele tempo já existiam ao menos 5 linhagens diferentes destes animais, o que demonstra que os cães já estavam domesticados por diversos povos primitivos.

Essa relação teve origem na troca. Enquanto os homens forneciam restos de comida, os, então lobos, proporcionavam proteção. Mais tarde, com a domesticação, passaram a ajudar em atividades como caça e pastoreio. Eles foram então espalhados por todo o mundo, junto com os homens com que viviam. Provavelmente, nossos melhores amigos já faziam companhia no momento em que os primeiros humanos chegaram nas Américas.

Além do trabalho

Mas em que momento os cães deixaram de ser um instrumento de guarda e trabalho e se tornaram nossos melhores amigos?

Essa relação também vem de muito longe, e o estudo paleontológico é de grande ajuda para sua compreensão. Em uma escavação realizada na Espanha, por exemplo, foram encontrados alguns ossos de animais juntos de ossos humanos datados de 4 mil anos.

O mais interessante nesse achado foi uma cadela, posteriormente chamada de Fíbula. Seu nome vem do osso da perna, e foi dado porque ela tinha fraturas nos dois ossos da pata traseira direita, e que foram consolidadas. Ou seja: ela foi curada, e morreu por alguma outra causa, muito depois do ocorrido.

Considerando a gravidade da lesão, essa cachorra provavelmente necessitou cuidado por um longo período, e não pôde voltar a realizar suas atividades normalmente. Isso demonstra que é muito possível que naquela época já havia uma ligação emocional entre os humanos que viviam ali e ela.

O fato é que a nossa relação moldou a maneira como o cão evoluiu, até apresentar a enorme variedade de tipos que temos hoje. Eles foram selecionados para desempenhar algumas funções, e isso se reflete no porte e aspectos físicos de cada animal. Porém, como essa seleção refletiu na maneira como interagem conosco? Alguns estudos recentes trazem informações interessantes sobre algumas das características comunicativas deles.

A carinha de coitado

Um estudo recente comparou por meio de dissecção a musculatura das sobrancelhas de cães e lobos. Estes músculos são responsáveis pelo movimento de levantar as sobrancelhas, que resulta na “cara de coitado”, ou “de filhote”, que os cães fazem.

O que se observou foi que a musculatura é muito mais desenvolvida nos cães do que nos lobos. Além disso, de acordo com outro estudo, os cães realizam esse movimento com muito mais frequência e intensidade do que os lobos. A hipótese para isso é de que os animais capazes de realizar esse movimento geram mais empatia (quem resiste?) e, por isso, foram sendo selecionados através das gerações.

O que se tenta estabelecer agora é se esses movimentos faciais são tentativas de se comunicar conosco (talvez se valendo da cara de dó para obter alguma vantagem?), ou apenas uma característica do movimento de sua face. Nesse caso, existe alguma divergência entre os cientistas.

Enquanto um estudo demonstrou que a atenção de uma pessoa levou a um aumento na movimentação da face, outro apontou que os movimentos foram os mesmos na presença ou ausência de uma pessoa. Nesse caso, a hipótese é de que sejam relacionados ao movimento natural dos olhos.

No caso da Tereza, tenho certeza que sua cara de dó é sempre com segundas intenções!

Atendendo a comandos

Os cães são uma das poucas espécies capazes de compreender quando apontamos. Embora haja algum questionamento sobre a maneira como os testes são realizados nas diferentes espécies, aparentemente eles respondem de maneira mais eficiente a esse tipo de comando do que outras espécies evolutivamente muito mais próximas de nós, como os chimpanzés.

Essa capacidade foi observada em diversas circunstâncias e experimentos diferentes, como por exemplo: eles foram capazes de seguir apontamentos de adultos e crianças e distinguiram pessoas que apontavam para o lado onde estava a recompensa de pessoas que apontavam para o lado errado, que passaram a ser ignoradas.

O mais interessante é que cães sem dono também foram capazes de seguir os apontamentos, o que pode demonstrar que é uma habilidade que está presente na espécie, e que não é muito dependente dos estímulos recebidos ao longo da vida.

Pedindo ajuda

Existem alguns trabalhos em que foi comparada a interação dos cães conosco para a resolução de tarefas. Após serem treinados para executarem uma tarefa e receberem uma recompensa em seguida, os animais foram então expostos a uma tarefa semelhante, porém impossível de ser realizada. Se observou então o que os animais faziam nesse momento. Paralelamente, essas mesmas experiências foram realizadas com outras espécies, como lobos, gatos e porcos criados como pets.

O que se viu foi que os cães paravam e olhavam para o experimentador, buscando alguma comunicação. Quem sabe, na esperança de receber alguma ajuda? (Isso, aliás, é exatamente o que o Chico faz quando encontra seu pote de comida vazio!).

Essa reação foi muito mais presente neles do que nos gatos, porcos e lobos. Estes últimos se demonstraram muito mais insistentes em continuar tentando realizar a tarefa de forma independente. Novamente, os resultados foram similares tanto para cães com dono quanto para os sem dono, ou nos que foram criados em condições semelhantes aos lobos.

Proximidade desde os primeiros dias

Essas características presentes nos cães já são notadas desde jovens. Quando comparados a filhotes de lobos, os de cães se demonstraram mais apegados aos humanos, mais capazes de entender nossos gestos e buscaram mais o contato visual.

Isso não quer dizer que tanto lobos, quanto cães não possam ter essas habilidades comunicativas melhoradas através de treinamento e aprendizado associativo. Porém, baseado nas evidências que temos, se sugere que os cães tenham uma habilidade inata, fruto da domesticação e sua seleção, que os permite se comunicar mais facilmente com nós humanos.

Existe uma infinidade de outros experimentos nessa área sendo realizados nos últimos anos, com teorias e resultados conflitantes entre si (confesso que acabei até me perdendo no meio de tanta coisa enquanto estudava o tema). Por isso, temos ainda que estudar muito para compreender totalmente como eles raciocinam e se comunicam conosco.

Mas que é de uma maneira especial, todo mundo que tem um cão em casa já sabe!

SONIA PEÇANHA

É veterinária no Rio de Janeiro.

Leia outros artigos da coluna: AUAU MIAU

Sonia Peçanha


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *